Não saber ganhar é o que está acontecendo com o Bloco de Esquerda.
“Não saber perder” é um lugar comum, tantas vezes ocorrido como citado. Muitas vezes é difícil ao perdedor – no carteado, no amor ou na politica – manter o sangue frio e a dignidade. Uma reacção da natureza humana que até mesmo os cavalheiros ou as damas de fina educação nem sempre conseguem segurar. Em politica, saber perder é considerado uma prova de maturidade democrática, de avanço ético.
O que se vê raramente é não saber ganhar. E é o que está acontecendo com o Bloco de Esquerda. A situação tem a ver com a votação na Assembleia da República, no passado dia 16 de fevereiro, de legislação que possibilita a adopção de crianças por casais do mesmo sexo.
As disputas à volta de questões sociais “fracturantes”, como se diz em Portugal, já têm anos. São os casos do aborto (Interrupção Voluntária da Gravidez, IVG), do casamento de pessoas do mesmo sexo, da adopção por casais homossexuais e da eutanásia.
Lentamente, e com muito debate, essa legislação foi sendo aprovada, passo a passo. Primeiro foi a IVG; houve um Referendo, em 1998, e os 53% dos eleitores opôs-se. Num segundo, em 2007, 59,25% pronunciaram-se a favor. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi votado na Assembleia da República em 2010, um ano antes do Brasil. Portugal foi o oitavo país do mundo a adoptar essa legislação.
Seguiu-se a questão da adopção de crianças por esses casais, a chamada “adopção gay”. A Assembleia da República aprovou-a em Dezembro do ano passado, mas o Presidente da República vetou-a. Segundo a lei, a AR teve de votá-la novamente e então o Presidente foi obrigado a promulgar, agora, em 16 de Fevereiro.
Pensa-se que a eutanásia será a próxima “guerra” entre conservadores e progressistas.
Em todos estes debates o Bloco de Esquerda esteve particularmente empenhado, considerando como bandeiras suas. Mas não só. Nas votações como liberdade de voto, mesmo deputados do PSD, de centro-direita, pronunciaram-se a favor. O Partido Comunista, que é bastante conservador e homofóbico mas não pode admiti-lo por questões de coerência histórica, tem evitado pronunciar-se, mas vota sempre a favor.
Nestas disputas, houve sempre um certo cuidado dos proponentes das mudanças em “dessacralizá-las”, isto é, afirmar que não se tratava de questões religiosas, mas sim de consciência, em que a religião não se devia considerar, uma vez que o Estado é laico. A Igreja Católica, que foi sempre contra, evidentemente, também tentou não se meter oficialmente nos debates, fazendo-o através dos seus crentes mais empenhados, com algumas declarações claras mas não agressivas da parte dos bispos. Ou seja, defendendo seus princípios mas não criticando os dos outros.
É preciso levar em conta que só a Igreja Católica tem massa crítica em Portugal. As outras confissões, judeus, cristãos evangélicos, muçulmanos, budistas, etc. não têm penetração e não estão representadas no legislativo, ao contrario do Brasil, onde a bancada evangélica parece crescer em cada legislatura. Portanto têm-se mantido afastadas destas “guerras”, limitando-se a reprovar as reformas entre os seus fieis.
Depois dos debates terminados, as forças conservadoras que perderam têm-se mantido relativamente quietas. Relembram sempre seus pontos de vista, mas não tentam reverter a legislação. Mesmo o Governo de direita que esteve no poder entre Junho de 2011 e Outubro de 2015 deixou para segundo plano as preocupações nesta área.
Tudo isto para explicar o despropósito que aconteceu a semana passada. Vencido o “sim” à adopção por casais do mesmo sexo, o Bloco de Esquerda anunciou que ia colocar nas ruas cartazes com a imagem de Jesus Cristo e os dizeres “Jesus também tinha dois pais”. O cartaz foi publicado nas redes sociais e imediatamente levantou um clamor geral.
Desta vez a Igreja Católica reagiu formalmente. O porta-voz da Conferência Episcopal, Manuel Barbosa, declarou que “é uma afronta aos crentes.” E o
cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, disse que a frase "falseia a verdade. Com certeza que Jesus sempre se referiu a Deus como seu pai, mas tinha uma mãe, que era Maria, casada com José, que adoptou Jesus.”
Mas as críticas mais duras não vieram nem da Igreja nem dos políticos conservadores. O Partido Comunista, decerto muito feliz por ver os seus concorrentes à esquerda “dar um tiro nos dois pés”, criticou a arrogância desnecessária de quem ganhou. A maioria dos comentadores, tanto os profissionais, como os amadores nas redes sociais, considera que o cartaz é, no mínimo, uma inutilidade, uma bazófia e historicamente incorrecto.
Por um lado, critica-se a imprecisão – o outro pai de Jesus é o pai da Humanidade – e o machismo – Jesus teve mãe e uma família heterossexual bem definida.
Por outro critica-se a inutilidade. A sociedade estava finalmente receptiva à adopção, depois de ouvir os argumentos de todas as partes, e até mesmo deputados conservadores votaram a favor; não vale a pena agora trazer a religião para um debate em que muitos católicos se pronunciaram a favor da nova legislação. Nenhum casal gay ou lésbico, quis fazer da vitória da sua igualdade a derrota dos cristãos. E ainda há o risco de dividir a comunidade LGBT, que tem muitos católicos.
Finalmente, a questão da falta de senso e mau gosto, que sendo menor não é de desprezar.
Fernando Negrão, do PSD, chamou a atenção para a postura politica do BE: “Os cartazes provam que nestas questões fracturantes o que esteve em causa sempre foi o predomínio do interesse das causas dos casais homossexuais – que são legítimas obviamente -, mas em detrimento daquilo que era o fundamental, que é a criança. O Bloco de Esquerda nunca teve em conta o superior interesse da criança nessas questões.”
Perante esta barragem, sábado o BE comunicou que não exibirá o cartaz nas ruas – o que não faz muita diferença, porque as redes sociais têm muito mais divulgação do que a rua e não se fala de outra coisa.
Marisa Matias, eurodeputada e candidata do BE às eleições presidenciais, afirmou que foi uma má ideia. E Catarina Martins, a principal líder do pequeno grupo de dirige o partido, acabou por reconhecer ontem que errou, “porque as pessoas não compreenderam o humor”.
Mas, se pode haver humor neste disparate, ele veio de alguns comentadores mais filósofos que viram imediatamente a contradição: afinal o Bloco de Esquerda reconhece a existência de Deus!
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.
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