É oficial: os bárbaros estão às portas, se não é que já entraram.
Por José Couto Nogueira*
Os atentados do Daesh na capital da Europa não foram apenas mais uma operação terrorista; foram a confirmação de que a Europa está indefesa – contra o terrorismo e não só.
Começa a tornar-se um lugar comum comparar a decadência da Europa à decadência do Império Romano. O que era um exercício intelectual das aves de mau agouro transformou-se numa análise lúcida dos politólogos bem informados e, até, de políticos incompetentes e alarmistas. É oficial: os bárbaros estão às portas, se não é que já entraram.
Houve quem pegasse uma analogia muito simbólica: quando a Comissária Europeia para Política Externa e Segurança, Federica Mogherini viu a destruição humana no aeroporto de Bruxelas, começou a chorar copiosamente. Do mesmo modo, quando o emir de Granada teve de se render aos cristãos, em 1492, Muhammad XII chorou. E sua mãe disse-lhe: “Choras como uma mulher porque não soubeste lutar como um homem.”
Realmente, que dizer duma Europa cuja responsável pela Segurança tem como reacção a um atentado na sua capital, chorar?
Os simbolismos são muito bonitos para marcar momentos históricos, mas não são argumentos. No entanto, argumentos não faltam para mostrar como a História se repete, no sentido inverso e adaptada ao tempo actual.
Não vamos aqui comentar novamente todas as razões já avaliadas até à exaustão para se ter chegado a este ponto, desde a falta de integração dos milhões de muçulmanos que têm emigrado para o continente europeu nos últimos vinte anos – como os paquistaneses na Grã Bretanha, os magrebinos em França e os turcos na Alemanha – até às ondas de choque da recessão de 2008.
A questão europeia tem sido, sobretudo, uma questão do fim da esperança de uma Europa unida e igualitária. Para haver integração de economias tão distintas, em dimensões e composição, como as dos países participantes, seria necessário harmonizar a legislação e o sistema de impostos. Nestas áreas, pouco se fez. Quanto à legislação, mexeu-se em coisas ridículas, como o tamanho das batatas ou as normas dos cascos de whisky, mas não se unificou os códigos comerciais e fiscais. Nos impostos, o que reina no continente é a concorrência e não a cooperação. Por exemplo: das dez maiores empresas portuguesas, oito têm sede fiscal na Holanda. Não vendem um parafuso na Holanda, não têm qualquer presença naquele país, a não ser um endereço postal e um escritório de advogados que lhes trata das declarações. Porquê? Porque o imposto que pagam na Holanda é dez vezes mais baixo do que o que pagam em Portugal. Mas a Holanda nem é o pior exemplo; o Luxemburgo, um país muito menor que São Paulo – tanto em território como em população – vive exclusivamente de servir de paraíso fiscal para as grandes empresas europeias e americanas que fazem negócios na Europa. Por outro lado, e este é mais um exemplo, a Alemanha emprestou bilhões à Grécia para que os gregos, que quase não têm mar territorial, comprassem quatro submarinos fabricados em Kiel. (Os portugueses compraram dois.) Ou seja, debaixo de uma aparente harmonia e solidariedade, o que os membros da UE têm feito é explorar-se uns aos outros. O euro, a moeda unificadora, apenas serviu para que os estados economicamente mais débeis deixassem de poder recorrer à desvalorização das suas moedas como forma de estimular a economia. E a livre circulação de pessoas, apregoada como sendo a extraordinária vantagem para alguém nascido em Espanha poder trabalhar em Itália, serviu simplesmente para que o investimento em educação nos países mais pobres beneficiasse os mais ricos com a importação de profissionais.
Sobre este pano de fundo de profundas divergências de interesse, temos uma classe política que trabalha exclusivamente para manter a sua posição privilegiada nos organismos comunitários. Um deputado europeu tem mordomias que fariam morrer de inveja os parlamentares brasileiros – e isto já diz tudo. Mas os órgãos europeus demoram anos a decidir o que quer que seja e, numa busca do harmonioso consenso de que todos se ufanam, o que conseguem são normas diluídas e pouco efectivas que não desagradam a ninguém, mas também não resolvem nenhum problema.
E aqui voltamos aos atentados de Bruxelas e o que se percebeu por causa deles. Não existe um controle de fronteiras do espaço europeu. Não existe uma policia europeia especializada em terrorismo. Não há, sequer, coordenação entre as agencias de segurança dos países membros. Uma coisa extremamente simples e urgente, que seria o controle global dos passageiros dos voos que partem ou chegam da Europa, está há mais de um ano à espera de regulamentação. Dos terroristas de Bruxelas, ficamos a saber que um tinha sido detectado na Turquia, mas a polícia belga não fez caso do comunicado que os turcos lhe mandaram. Outro tinha ficha na Securité francesa, mas essa agencia não notificou os belgas da sua presença em Bruxelas. E por aí vai. Agora, que a bombas rebentaram, as altas instâncias europeias estão a preparar o tal controle dos voos – próxima reunião, em Maio...
Depois dos atentados de Paris, o pequeno François Hollande subiu nas tamancas, disse que a Europa estava em guerra e mandou bombardear o Califado Islâmico. Só a França tomou esta atitude, porque os outros países ou não têm meios de o fazer, ou não querem gastar dinheiro a fazê-lo. E de que servirá bombardear o Califado, quando os terroristas só vão lá treinar e depois vêm pacatamente viver na Europa, à espera do momento certo? Aliás, de que serve bombardear o Califado, se ao mesmo tempo se compra ao Califado petróleo barato e antiguidades pilhadas em Palmira e outros locais arqueológicos?
A capital da Europa é Bruxelas; mas Bruxelas não está apenas na Europa; é a capital de um pequeno pais, a Bélgica, dividido por três idiomas, e que tem um aparato de segurança calculado em mil e duzentos agentes – que não falam entre eles, quanto mais com os de outros países. A Europol, que seria a polícia europeia, foi organizada sobretudo para apanhar ladrões de jóias e de arte, e tem ficheiros parciais pois, evidentemente, as polícias dos países torcem o nariz a dar informações à Europol, porque não a controlam e não se sabe onde essas informações irão parar. Nem a Europol tem corpo de choque, militarizado, para efectuar operações de rua. Entre um ficheiro detectado em Roma, um comunicado transmitido a Madrid e um corpo da polícia intervir em Londres há um milhar de dificuldades que tornam a operação inútil ou tardia. Por outro lado, invadir os bairros problemáticos de Bruxelas com tropas do exército equipadas como se fossem para a guerra nuclear só aliena ainda mais os habitantes e cria novos ressentimentos.
A comparação com o final do Império Romano é evidente: desorganização entre os territórios, tropas que têm mais estrangeiros do que nacionais, elites acomodadas que vivem no luxo dos seus condomínios fechados e políticos que só pensam como se manter no poder. E, tal como no Império, ter a percepção do perigo não resolve as fraquezas. É isso, a decadência.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário