Porque nos nutrimos da eucaristia é que precisamos romper com as injustiças do mundo.
Os cristãos e cristãs precisam é de uma piedade, como verdadeiro mover em direção ao outro.
Por Felipe Magalhães Francisco*
Há fome no mundo. Isso é um escândalo, quando se sabe que grande parte dos alimentos produzidos em todo o planeta são desperdiçados. A fome no mundo é consequência da manipulação, da avidez, da injustiça e, para resumir, da desumanidade. Muitos usam a existência da fome como argumento para a não crença em Deus. Dessa maneira, muda-se o foco do problema: a causa dos processos de desumanização de nossa humanidade não está sob a responsabilidade de Deus, mas em nossas mãos.
Aos cristãos e cristãs esse apelo não pode passar, sem que haja uma interpelação ética. Afinal, como podem festejar, celebrando sua vida comendo e bebendo do Corpo e do Sangue do Cristo, sem se deixarem afectar pela dor do outro, pela fome do outro? O texto bíblico mais antigo que trata sobre o rito eucarístico, em 1Cor 11, a partir do versículo 17, toca nessa questão. Os versículos 28 e 29, por muito tempo, têm servido de argumento para promover uma moral muito escrupulosa, no que se refere à comunhão eucarística, que gera graves danos à compreensão da riqueza que é o banquete eucarístico. Diz o texto: “Examine-se cada um a si mesmo e, assim, coma do pão e beba do cálice; pois, quem come e bebe sem distinguir devidamente o corpo, come e bebe sua própria condenação”.
Interpretar a recomendação de Paulo a respeito da aproximação à eucaristia, pelo viés do escrúpulo, é uma das razões pelas quais, por muito tempo, pensou-se (e ainda há quem pense!) que a eucaristia seja prêmio para os perfeitos e prova da dignidade desses perfeitos. Insistindo numa lógica contrária, o Papa Francisco tem buscado resgatar uma postura mais sensata, frente à questão da participação na eucaristia, quando salienta que a eucaristia é remédio e não prêmio. Isso nos faz pensar no real sentido pelo qual somos chamados a comer do Corpo e do Sangue sacramentais de Jesus, que é que nos tornemos um só corpo e um só espírito, configurados à vida filial e à missão do Filho de Deus.
Antes de comungar, todos os católicos e católicas confessam: “Senhor, eu não sou digno/a que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e eu serei salvo!”. Tomar parte na vida entregue do Senhor é dom, graça. Essa graça nos transforma, sara-nos e nos impele ir ao encontro do outro, para anunciar quão alegre é o Evangelho do Reino. E isso nos faz compreender a exortação de Paulo: quando nos esquecemos do aspecto convivial, fraterno, a eucaristia não nos toca com verdade. A situação da comunidade de Corinto se repete ainda hoje: come-se e bebe-se da vida do Senhor, mas não há sinal de fraternidade e de cuidado para com o outro. “De fato, quando vos reunis, não é para comer a ceia do Senhor, pois cada um se apressa a comer a sua própria ceia, e enquanto um passa fome, outro se embriaga” (1Cor 11,20-21).
Há fome no mundo. Como, então, os cristãos e cristãs podem se alegrar de se alimentar do Corpo e Sangue do Senhor e rezar, todos os dias, “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, e isso não se traduzir na busca por saciar a fome do mundo? Essa é uma interpelação forte que não pode ser ignorada. Porque nos nutrimos da eucaristia é que precisamos romper com as injustiças, com o desperdício, com o descaso para com os outros. Mais de que uma piedade escrupulosa para com a eucaristia, os cristãos e cristãs precisam é de uma piedade, como verdadeiro mover em direção ao outro. Afinal, os irmãos e irmãs padecentes da fome são o Corpo de Cristo sendo profanado nos rincões do mundo. Façamos o desagravo!
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015).
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