segunda-feira, 2 de maio de 2016

Cuba, uma nação falida

Foi a nação que se partiu, o estado continua funcionando com normalidade preguiçosa.
Cuba tornou-se uma nação acostumada a viver sem liberdade e sem esperanças.
Por Juan Orlando Pérez *
Cuba é uma nação falida. Não um estado falido – como Iraque, Síria, Haiti e outros países desafortunados. O que fracassou em Cuba foi a nação, não o estado. O estado cubano não perdeu controle de suas fronteiras, não deixou províncias inteiras à mercê do saqueamento por bandidos e insurgentes. Nas escolas canta-se todas as manhãs o hino nacional e duas vezes por ano o parlamento escuta os ministros do governo e vota, com generosa unanimidade, a favor de cada uma de suas iniciativas. Os jornais celebram os aniversários patrióticos, a televisão transmite programas de variedades e jogos de beisebol e futebol, os correios entregam as cartas, as universidades outorgam títulos e medalhas, os opositores são diligentemente presos e espancados.
Foi a nação que se partiu, enquanto o estado continua funcionando com normalidade preguiçosa. A nação desapareceu, mas o estado envia embaixadores a 194 países e prisioneiros a 200 cárceres. A nação se extinguiu, restaram dela apenas vestígios no solo da ilha, mas os trabalhadores recebem com pontualidade escassos salários e o noticiário nacional informa todas as noites a previsão do tempo e as calamidades climáticas que assolam outros países. A nação foi fechada, talvez definitivamente, mas as editoras ainda publicam dolorosos cadernos de poemas e biografias de personagens notáveis, reparte-se o pão e o arroz, os hotéis estão abertos, os hospitais e os bordéis, cada criança que nasce recebe um nome e um número de identidade.
O estado em Cuba é um estado de mínimos que dá às pessoas comida suficiente para que não morram de fome, nem uma mordida a mais, um número bem calculado de horas na frente da televisão para mantê-las distraídas, mas não muitas, a ponto de se fartarem também da TV e pedirem outra coisa. Nada de muita porrada nos programas, apenas as necessárias, as inevitáveis, pelo temor de que um soco a mais, narizes fraturados, talvez um morto poderia levar todo mundo às ruas para protestar.
Cuba não é a Dinamarca, mas funciona. Se um novo assunto, de consequências inquietantes para o país, tem de ser abordado pelos jornais, é encomendado ao jornalista que mais convincentemente possa fazê-lo. Se chega uma nova aspirina à ilha, é vendida ao primeiro da fila. A cada família é dada uma hora de água por dia e em tempos de seca, um barril cheio. Se uma casa por acaso é construída, é dada ao ministro que mais necessite e, se não restam ministros sem casa, a algum campeão olímpico ainda vivendo num casebre ou à família que vive há mais décadas num subúrbio em ruínas.
A nação, no entanto, falhou nas suas funções mais essenciais. Como nação, Cuba deixou de ter propósito e direção e perdeu a razão de ser. Não se sabe o que dá a si mesma nem ao mundo. Nem liberdade, nem justiça, nem riqueza. Açúcar Cuba já não fabrica tanto. Café, só um pouco. Carros, aviões e computadores Cuba deixa que alemães e chineses fabriquem. A lagoa de petróleo sobre a qual, diziam, a ilha flutua nunca foi encontrada e Cuba segue sugando gulosamente o petróleo da Venezuela.
O presidente dos Estados Unidos e o Papa são mais populares em Cuba que qualquer cubano que não faça música dançante, talvez mais que qualquer cubano, músico ou não. Os cubanos congestionam as rodovias da América Central em fuga para o Texas ou para Flórida ou se aglomeram nas portas das embaixadas de Havana à espera de um visto para qualquer parte.
As revistas intelectuais citam Gramsci e Foucault, falam de poder e cidadania, de democracia popular e economia social como se seus autores fossem todos mexicanos ou argentinos. Quando a polícia interrompe a safanões uma marcha de quinze ou vinte mulheres, em vez de sair em defesa delas, as pessoas se escondem, viram a cara e vão ajudar a polícia, empurrando-as e insultando-as. Ninguém jamais se levantou na Assembleia Nacional do país para dizer simplesmente: “Basta!”
O estado embruteceu antes da nação para depois aniquilá-la cirurgicamente. O estado cresceu até tornar-se cem vezes maior que a nação e não houve espaço para ambos nesse país pífio. A nação cedeu seu lugar, se entregou ao estado sem condições, resignou-se a uma morte obscura e silenciosa. Cada integrante da nação a traiu, os trabalhadores que roubam cimento, tinta ou gasolina em vez de fazer greve para reclamar seu direito a greve, os médicos que cobram 100 dólares para colocar um paciente na frente da fila de espera para uma operação, os jovens que marcham pelas ruas com fotos de jovens de outros tempos que, se estivessem vivos, estariam na cadeia ou não estariam em Cuba, os barulhentos exilados que creem que Barack Obama deveria fazer pelos cubanos o que os próprios cubanos não sabem ou não querem fazer.
Uma nação que se acostumou a viver sem liberdade e sem esperanças – e não parece interessada em recuperá-las – já não é uma nação. Poucos povos deram tanto poder por tanto tempo aos seus donos em troca de tão pouco e poucos fizeram tão pouco para livrar-se deles. Sem uma nação que lhe faça oposição e o corrija, o estado cubano não tem porque mudar, quando nada para ser tratado com a mesma cordialidade com que é tratada a Suiça. Aferrados aos restos da nação, ao que recordam dela, sua música, seus heróis sombrios, seus poetas, 1959, os cubanos fingem ser o que já não são. Nada são, nada os une, nada os impulsiona ou comove, nada pode salvá-los.
Cuba antes da revolução. Veja o vídeo.
*Juan Orlando Pérez, jornalista e escritor cubano exilado em Londres. É editor do blog El Estornudo. Tradução: Marco Lacerda

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