segunda-feira, 9 de maio de 2016

Papeis do Panamá: strogonoff afinal é pizza

"Há dezenas de jornalistas que recebiam propina" de empresários para não divulgarem.
Quando o aparelho de Estado está corrompido, há menor necessidade de esconder dinheiro sujo.
Quando o aparelho de Estado está corrompido, há menor necessidade de esconder dinheiro sujo.
Por José Couto Nogueira*
Justamente preocupados com a corrupção que grassa no país, os brasileiros não terão prestado muita atenção aos chamados Panamá Papers.
Mas o escândalo, que estorou no passado dia 3 de Abril, fez manchetes em todo o mundo. Nada mais nada menos do que 11,5 milhões de documentos da empresa panamenha Mossak Fonseca, pertinentes a 214 mil empresas offshore, foram entregues ao jornal alemão “Süddeutsche Zeitung” por um informante anônimo.
Dado o volume da documentação, o jornal entregou-a ao Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, ICIJ. Esta ONG é constituída por 400 jornalistas de 107 meios de comunicação localizados em 80 países. Em Portugal, os quatro jornalistas participantes trabalham no jornal “Expresso” e no canal televisivo TVI, mas logo que os documentos são publicados nos dois meios podem ser usados pelos outros órgãos.
O Consórcio tem um historico de investigação de vários tipos de corrupção e ocultação da verdade ao público, nomeadamente investigações sobre a tabaqueira Philip Morris, vários esquemas de lavagem de dinheiro, venda de armas, e empréstimos fraudulentos segundo o sistema Ponzi (o mesmo usado por Madoff nos Estados Unidos, mas que continuam acontecendo um pouco por toda a parte).
Os jornalistas investigaram a vasta documentação durante um ano, antes de tornarem público o modelo de negócio da Mossak Fonseca, que é a quarta maior empresa internacional que vive destes esquemas. Note-se que o negócio em si não é ilegal, pois utiliza os chamados “paraísos fiscais”, dos quais o Panamá é apenas um entre muitos (Bahamas, Seicheles, Ilhas Virgens, Jersey, Madeira, Luxemburgo, etc, etc). Na maioria dos países, as leis permitem que se exportem capitais, desde que se paguem os impostos. Mas, não sendo ilegais as transferências internacionais, fazê-las para os paraísos fiscais denota uma intenção culposa, pois são o único meio de ocultar um rol de ilegalidades ou de situações politicamente comprometedoras. Fundos obtidos com a corrupção de políticos, é uma delas. Dinheiro obtido em negócios ilícitos, como armas ou droga, é outra. Pagamentos “por fora” nas transferências desportivas, é mais outra. Segundo os analistas financeiros, a quantidade de “negócios” que são assim ocultados é tão volumosa como a dos negócios lícitos e transparentes. A especialidade da Mossak Fonseca é criar empresas fictícias (“shell companies”) com sócios laranjas, por onde o dinheiro circula sem que seja possível detectar a origem e os verdadeiros donos.
Citando o “New York Times”: “Os Papeis do Panamá revelam uma indústria que prospera graças aos iatos e buracos negros da finança internacional. A perda de receita fiscal é uma das consequências deste sistema subterrâneo; mas ainda mais perigoso são os profundos estragos na estrutura democrática e na estabilidade regional que ocorre quando políticos corruptos arrumam lugar para ocultar activos roubados à riqueza do país.”
O fato de no Brasil os Papeis do Panamá não terem causado maior impacto deve-se não só à enorme corrupção que existe no país, como também porque os corruptos nacionais usam geralmente outros modelos de lavagem de ativos. Dizendo as coisas como elas são, quando o próprio aparelho de Estado está completamente corrompido, há menor necessidade de esconder dinheiro sujo do controle fiscal. Ganhar dinheiro honestamente e declarar ao fisco tudo o que se ganha ocorre entre as classes baixa, média, e alguma classe média alta; os grandes “operadores” não têm essa necessidade.
Dado o enorme volume dos Papeis do Panamá, os jornalistas têm levado algum tempo a revelar os nomes envolvidos nos esquemas. O resultado das revelações também varia de país para país, dependendo do seu sistema político e social. Citando dois exemplos extremos: na Islândia, o primeiro ministro Sigmundur David Gunnlaugsson demitiu-se dois dias depois de se saber que estava na lista; na Federação Russa, o envolvimento de Putin (através de um amigo violoncelista...) levou-o a sorrir, encolher os ombros e dizer que eram intrigas dos americanos…
O ministro da industria espanhol, José Manuel Soria, também foi obrigado a demitir-se. Há nomes inesperados, como o cineasta Almodôvar, Kojo, o filho de Kofi Annan, Lionel Messi; e nomes manjados, como Platini, ou o pai de David Cameron. Noutros países terceiro mundistas, ditadores e presidentes vitalícios nem sentiram necessidade de se pronunciar.
Em Portugal, já apareceram alguns nomes óbvios, como Ricardo Espírito Santo ou Hélder Bataglia, envolvidos em escândalos conhecidos, e outros menos esperados (mas não surpreendentes), como os empresários Manuel Vilarinho e Ilídio Pinho. O que também não surpreende é que todos tenham dito que não sabiam, não se lembram, não pode ser.
Mas a questão nem é essa. A questão é como a investigação está a ser tornada pública. Com a desculpa de que os papeis são milhões, os nomes vão aparecendo aos dois e três por semana, ao mesmo tempo que os jornalistas investigadores lançam bombas do tipo “há centenas de empresários envolvidos”, ou, o que é muito pior “há dezenas de jornalistas que recebiam propina” desses empresários. Então, se eles sabem quantos, é porque sabem quais, não é verdade? O que não podem é lançar suspeitas e depois não as confirmar. Até agora não apareceu o nome de nenhum jornalista, o que faz elucubrar sobre o conhecido corporativismo da classe.
Por outro lado, não falta quem lembre o que aconteceu ao escândalo anterior, o chamado Luxleaks. Em Novembro de 2014, o Consórcio anunciou que 343 empresas multinacionais estavam a usar as vantagens fiscais do Luxemburgo para fugir aos impostos nos seus países de origem – o que não sendo ilegal no sentido estrito do termo, denuncia práticas fiscais altamente prejudiciais para esses países. Quem tinha montado o esquema? O primeiro ministro do Luxemburgo, Claude Juncker, que por acaso acabava de ser nomeado para Presidente da Comissão Europeia.
Como está a situação do Luxleaks neste momento? Há dois processos a correr: um contra o funcionário luxemburguês que dedurou a situação, e outro contra o jornalista que a recebeu. Juncker, impávido, continua a presidir em Bruxelas e até já anunciou medidas para combater a evasão fiscal ao nível europeu. As empresas, assobiando para o lado, continuam a usar o Luxemburgo. O que parecia um prato de alta culinária, acabou em pizza.
Parece que agora, pelo menos em Portugal (e mais os países terceiromundistas do costume) vai acontecer o mesmo, e ainda por cima que a pizza será servida já fria.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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