O Brasil real de hoje é uma tsunami de ignorância, preconceito e falta de educação.
Me espanta que muita gente se espante com a indigência mental de nossos deputados.
Por Ricardo Soares*
No período de um ano e meio que fui diretor de conteúdo e programação da Tv Brasil colocou-se no ar uma bela série chamada "O Brasil visto de cima" que através de lindas tomadas aéreas mostrava pontos de beleza indizível de nosso país. O foco era nas belas paisagens, nos paradisiacos cenários.
Usando "O Brasil visto de cima" como mote imagino que percepção teriam telespectadores de uma série que sobrevoasse o Brasil real, o Brasil sem paisagem emoldurada, sem os ufanismos caboclos, sem aquela falsa premissa da cordialidade e alegria. Antes que vocês digam que sou um estraga-prazeres aviso que creio ser útil um sobrevoo verdadeiro já que parece que nos conhecemos pouco. Muitos inclusive pensam – como prova esse doloroso processo político atual – que o Brasil foi feito só para privilégio de alguns em detrimento de tantos outros. Pois o tal "Brasil profundo" vai muito além de Higienópolis ou Ipanema, não custa "reavisar".
As vezes diante de cenários tão degradados pela violência, descuido e falta de planejamento urbano imagino que certos sobrevoos lembrem mais aqueles dos drones que passam sobre a desolação da guerra síria do que as belas imagens aéreas do " Brasil visto de cima". Há lugares onde o poder público não chega e quando chega é através da desmedida ação policial que antes arrebenta pra depois perguntar. Não precisa nem sobrevoar para saber que é a terra arrasada dos traficantes, das milicias de um enorme poder paralelo que legisla sobre a vida e morte dos brasileiros.
Não bastasse o desalentador sobrevoo sobre essa paisagem de lajes, construções inacabadas, amontoados de barracos e casas feias sem árvores em volta com uma densidade demográfica sufocante vamos pois aumentar o som para ouvir o que ouve esse Brasil: funk ostentação, pagode meloso e, horror dos horrores, "sertanojo", muito "sertanojo". Uma incongruência no país que foi e é criador das melhores músicas do mundo.
Aqui, por motivos que não cabem nesse texto, virou o Brasil que vive entre asquerosos topetes sertanejos, jogadores de futebol filiados à "União Internacional dos cabelos horrendos", deputados evangélicos a bradarem contra a imoralidade com os bolsos recheados de grana espúria, ruralistas que pretendem esfolar a trindade "gays, índios e negros esclarecidos", fascistas que defendem torturadores e reivindicam o direito de usar armas para matar em legítima defesa e mais um enorme elenco de excrescências que nos fazem querer fugir desse Brasil feio, ignorante,escravizado pela alienação e burrice da "indústria cultural" se é que ela possa levar a peja de "cultural" com tanta porcaria fabricada em laboratórios de sucesso onde tudo vale menos cantar ou compor bem. Em primeiro lugar o topete, de preferência com gel.
Me espanta que muita gente se espante com a indigência mental de nossos deputados e com os dedos sujos com os quais apontam as sujeiras alheias. Essa gente foi colocada ali por esses eleitores brasileiros que não são sobrevoados a contento por nossos analistas de Brasil que não saem da zona sul de Rio e de São Paulo e do plano piloto de Brasília. Vamos deixar de hipocrisia e populismo. O Brasil real de hoje é uma tsunami de ignorância, preconceito, desfaçatez e falta de educação já que "educação" jamais foi prioridade de qualquer governo pós ditadura. E muito menos durante a ditadura ocupada em soterrar o conhecimento em nome de patriotismo rastaquera revestido em aulas de educação moral e cívica.
O resultado de toda essa gosma de deseducação, mau gosto, culto ao "deus mercado" e ao consumismo deixa até alguns politicos como Leonardo Picciani, deputado pelo PMDB, com a mesma estampa de gorducinhos de calça justa com topete que grasnam em duplas Brasil afora como os tais Bruno e Marrone, Henrique e Juliano, Jorge e Mateus e algumas outras drogas pesadíssimas do mesmo naipe. É o triunfo da estética goiana em rincões distantes do Brasil. O Brasil do agronegócio e do agrotóxico não apenas musical. Essa patuléia se sente inclusive legitimada nos grandes centros do sudeste pois fazem shows para a classe média e alta em palcos especialistas em detritos como o tal "Vila Mix" em São Paulo onde clones de Katia Abreu se deleitam sorvendo "merlôs" e "cabernês".
Parte dessa terra arrasada que nenhum "Brasil visto de cima" mostrou é responsabilidade da mídia que se eximiu de criticar e apontar caminhos de mais qualidade (não só musical) valorizando aquela estética de "maloqueiro de butique" advogada por gente como Regina Casé que pregou sempre que o que vem da periferia (que ela não conhece de fato) é um "Brasil legal".
Bom, chegamos onde estamos pelo "esforço" de imbecilização de muita gente. E não vou aceitar jamais a peja de pernóstico ou elitista por escrever isso. Sempre acreditei no "biscoito fino para a massa" que o Oswald de Andrade defendia. O povo brasileiro não se imbeciliza porque pede imbecilidade conforme dizem os difusores do lixo. Se imbeciliza porque lhe dão porcaria. Fosse assim – já repeti isso muitas vezes – os concertos gratuitos de orquestras sinfonicas país afora não ficariam tão cheios. Mais Beethoven e menos Wesley Safadão. E uma enorme incursão e sobrevoo aéreo sem maquiagens para que conheçamos melhor essa nação alienada.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv e jornalista. Publicou, entre outros livros, o romance "Cinevertigem" ( 2005) e o infanto-juvenil "Valentão" (1999). Apresentou, dirigiu e escreveu programas como "Mundo da Literatura" e "Metrópolis". Escreve às segundas e quintas no DOM TOTAL.
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