terça-feira, 7 de junho de 2016

Conversão ecológica

domtotal.com

Só alcançará a conversão integral quando for capaz de transcender noções de conversão.
A complexidade de nossas relações exige de nós uma particular atenção.
A complexidade de nossas relações exige de nós uma particular atenção.

Por Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM*

Surpreendeu-nos positivamente a presença do neologismo “conversão ecológica” (nn. 216-221) no corpo do texto da Laudato Si’. Trata-se de um sugestivo e apropriado neologismo cunhado pelo papa Francisco. Esta terminologia pode até soar estranha a ouvidos habituados a escutar simplesmente o termo conversão, desacompanhado de qualquer adjetivo. Talvez encontremo-nos diante de mais um caso em que o uso de um substantivo generalizante se dilua completamente justamente pela falta de um adjetivo que o qualifique, concretizando-o. E talvez seja mesmo o caso de dizer que uma ideia bastante generalista de conversão se adéqua muito bem a uma ideia igualmente ou tanto mais genérica de pecado.

Dada a complexidade das relações que compõem nossa vida atual, talvez seja mesmo o caso de especificar cada vez o âmbito em que se deva dar essa conversão. Se conversão significa literalmente mudar radicalmente de rumo, então talvez seja realmente o caso de indicar cada vez em que âmbitos ou espaços ou dimensões essa guinada se deva dar. Neste caso, parece bem apropriada a noção de conversão ecológica. Se, de fato, tem razão o patriarca ecumênico Bartolomeu ao interpretar os males causados por nós às criaturas do planeta como crimes e, em última análise, como pecado contra o Criador, então nos parece igualmente razoável que o papa Francisco sugira-nos a conversão ecológica como forma de se prevenir deste específico pecado, o “pecado ecológico”.

Vale a pena lembrar, a este propósito, que o papa Francisco situa a noção de conversão ecológica no contexto mais amplo da imprescindível conversão integral. O pressuposto é que alguém só alcançará uma conversão integral na medida em que se fizer capaz de transcender noções de conversão ainda muito presas a situações existenciais e intersubjetivas e quem sabe até sociais, mas não sensíveis ainda à dimensão ecológica da vida quotidiana. Diz textualmente o papa: “Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa” (n. 218).

Neste sentido, a preocupação do papa Francisco em especificar uma, a ecológica, entre as várias dimensões constitutivas da conversão evangélica não é a de separar, criando divisões ou rupturas, pretensas conversões diferentes umas das outras. O que ele quer, na verdade, é distinguir bem as várias dimensões que compõem a complexidade da conversão evangélica para poder realçar melhor a integralidade da conversão, na perspectiva cristã. Trata-se sempre da conversão evangélica, no singular, e isso porque a conversão evangélica possui características próprias que confirmam sua singularidade. Mas para que essa conversão evangélica possa aparecer em sua força originária é preciso que se distingam as suas várias dimensões sem as quais ela não seria, para todos os efeitos, evangélica.

E é importante salientar que essa conversão, que inclui entre suas várias dimensões a ecológica, é fruto da nossa resposta aos apelos de uma autêntica espiritualidade também essa integral. Uma vez que “tudo é relação e todos os seres são interligados” (nn. 92;115;120 passim), então, não há mais espaço para uma espiritualidade separada e, pior ainda, contraposta a tudo o que diga respeito à materialidade da vida. Espírito e matéria são distintos sim, radicalmente diferentes, mas nunca separados e menos ainda contrapostos. São reciprocamente implicados. E por isso celebram continuamente uma experiência inusitada de comunhão. No bojo deste novo paradigma ecológico assumido pelo papa, na Laudato Si’, reconhece-se que a espiritualidade é o avesso da materialidade, pois, em última análise, espírito e matéria se interpenetram produzindo a instigante aventura da vida. Na contundente expressão do grande poeta Fernando Pessoa, “toda matéria é espírito”. Esclarecedoras, as palavras do papa Francisco a esse respeito: “[...] a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (n. 217).

O papa revela a consciência de que a conversão necessita atingir as várias dimensões que compõem nossa relacionalidade constitutiva de seres humanos. A complexidade de nossas relações exige de nós uma particular atenção. Pois, de fato, as relações se intercomunicam uma vez que somos nós os sujeitos que as vivemos. De fato, cada vez é o mesmo sujeito que se experimenta em uma relação de interioridade para consigo mesmo e, ao mesmo tempo, em uma relação intersubjetiva, comunitária, social e cósmica. O sujeito que as vive e que se encontra enredado nas malhas dessa interrelacionalidade é quem dá unidade às distintas relações. No entanto, essas relações, apesar de vividas pelos mesmos sujeitos, distinguem-se umas das outras. E uma vez que cada uma delas constitui uma relação específica, necessitamos acolhê-las e reconhecê-las respeitando a especificidade de cada uma delas.

Por esta razão, é fundamental reconhecer a relativa autonomia de uma relação face às outras. E isso não fere minimamente a mutualidade e reciprocidade dessas mesmas relações entre si. Autonomia e mutualidade constituem a complexidade das distintas relações vividas pelo ser humano no quotidiano de sua vida. Daí a conclusão de que cada uma dessas dimensões relacionais necessita de intervenções que respeitem seus dinamismo e ritmo próprios. Embora estejam intrinsecamente relacionados, o pessoal, o interpessoal, o comunitário, o social e o cósmico, cada um deles possui dinamismos próprios e regras relativamente autônomas. Não gozam de autonomia absoluta, obviamente. Todavia, gozam de uma autonomia relativa. As coisas não se misturam, sem mais. As mudanças não ocorrem sob o assim chamado “efeito dominó”. As transformações se dão também de forma complexa uma vez que os desafios e as possibilidades também são efetivamente complexos. Por essa razão, vale a pena atentar para a advertência que nos faz o papa Francisco: “Todavia, para se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias [...] A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (n. 219).

Por fim, o papa Francisco chama nossa atenção para várias atitudes que compõem o mosaico da assim chamada conversão ecológica. A primeira delas seria a atitude de gratidão e de ternura como expressão do reconhecimento pelo dom inaudito da criação. Esse reconhecimento deveria se concretizar em gestos gratuitos de renúncia e de generosidade face às demais criaturas. Outra atitude seria a de não se considerar separado das demais criaturas, mas de nos sentirmos parte, autênticos “filhos da terra” e, portanto, irmãos de toda criatura. Há ainda outros elementos elencados pelo papa, provenientes de nossas convicções de fé, a saber: que cada criatura reflete algo do Criador e que, portanto constitui uma mensagem única e singular; a consciência de que Cristo assumiu em si esse mundo material e que agora, ressuscitado, continua habitando, por meio de seu Espírito, a interioridade de cada criatura, fazendo delas e com elas seu corpo cósmico; que há um sentido inscrito pelo Criador e que nos meandros sutis da inteira criação o ser humano vai interpretando-o mediante um lento discernimento. “Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis” (n. 221).

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia

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