quinta-feira, 16 de junho de 2016

Crepúsculo sobre os deuses

  domtotal.com
Quais de nossos costumes assombrarão os viajantes do futuro? Que memórias legaremos?
Hoje restam apenas as ruínas da cidade sagrada de Teotihuacán.
Hoje restam apenas as ruínas da cidade sagrada de Teotihuacán.
Por Luís Giffoni*

Ao subir as centenas de degraus que levam ao alto da pirâmide do Sol, quase ao poente, vi não apenas o conjunto de Teotihuacán, no México, também desfrutei de um privilégio reservado aos sumos sacerdotes pré-colombianos. O topo sagrado, mais próximo do céu, remeteu-me ao poder da religiosidade para moldar as civilizações. Por momentos, entrei numa dimensão colateral à realidade.

Minha cabeça, diante do sítio arqueológico que desde menino me fomentava fantasias, vivenciou os sacrifícios humanos, não tantos quanto os 80.400 que os astecas teriam executado numa única cerimônia, e me mergulhou em situações plausíveis. Imaginei toltecas, apegados ao instinto de sobrevivência, apesar das drogas e das conversas que lhes eram ministradas, tentando fugir das garras dos carrascos e, para salvar-se, correram desesperados pela Avenida dos Mortos. Os filhos das elites também pereceram nos altares? Quantos cadáveres foram descarnados até que os esqueletos, sustentados apenas pela cartilagem, quais monstruosas marionetes, se transformassem em objeto de folguedo popular, rebolando os ossos nus sob o comando de sacerdotes com enormes cocares? Teria surgido aí a tradição mexicana de festejar ruidosamente o Dia dos Mortos, data em que as pessoas usam roupas com esqueletos pintados e executam danças macabras?

Teletransportado ao ano 700, vislumbrei o dia a dia daquela gente atarantada pelos rituais sanguinolentos ou entregue aos afazeres rotineiros, ignorante do desaparecimento dali a dois séculos. Idêntica sorte aguardaria a civilização ocidental? Quais de nossos costumes assombrarão os viajantes do futuro? Que memórias legaremos?

Hoje restam apenas as ruínas da cidade sagrada de Teotihuacán. Por toda a parte, destacam-se serpentes e jaguares com dentes descomunais. O aspecto dantesco provoca arrepios. Padeceriam os teotihuacanos de constante terror? Quantos, libertos das crendices, conseguiram ver pedra onde havia apenas pedra, sangue onde havia apenas sangue, assassinato onde havia apenas assassinato? Quantos se insurgiram contra as imolações em massa? Quantos, tocados pela religiosidade, tiveram as preces atendidas e, agradecidos, ofereceram os filhos em pagamento pelas dádivas? Quantos simplesmente se deixaram levar pelos costumes, sem qualquer consideração crítica?

Acompanhei o pôr do sol sobre Teotihuacán. Centenas de pardais apresentavam um réquiem para os pré-colombianos tombados em consequência da seca, da guerra, dos sacrifícios e da conquista europeia, concerto triste como o de mariachis que, paramentados a caráter com seus fardões e sombreros bordados em fios de ouro e prata, se debruçam sobre a morte e o passado, enquanto os dois trompetes do conjunto calam o coração com o toque de silêncio.

Na tardinha, as pirâmides do Sol e da Lua, quais colossais iguanas com escamas ferruginosas no dorso, ganharam um banho dourado. A brisa fria me obrigou a esfregar as mãos e os braços e a apressar a descida. A lua de sangue no leste, indiferente a minhas divagações, remeteu-me a Pedro Páramo, a obra de Juan Rulfo que talvez melhor reflita o México: “A lua era igual à de agora, mas não tão vermelha. Era esta mesma pobre luz sem lume... Era o mesmo momento... Você ia se distanciando, cada vez mais descolorida entre as sombras da terra”.

Assim, entre as sombras da terra se foram os toltecas, olmecas, astecas e tantos outros. Ficaram as ruínas e a imaginação para reerguer parte de seu esplendor. Esplendor, sangue e queda, alerta que ecoa há vários séculos. E ainda não o escutamos.

*Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações como do Prêmio Jabuti de Romance, da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte.

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