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A mídia constrói realidades.
Somos vítimas de uma inadequação entre o saber e a realidade.
Habitamos num mundo extremamente complexo. O Mercado, a Tecnociência e a Midia constituem cenários nos quais se dão os vários âmbitos da experiência humana. A Tecnociência tornou-se horizonte de compreensão do ser humano em relação ao mundo e a si próprio. Não apenas nossos estilos de vida, nosso modo de trabalhar e viver, são condicionados pela técnica, mas também nossa identidade mais profunda. Testemunhamos ainda o fenômeno da “mercantilização da vida” produzido pelo mercado que vai se impondo como único cenário de nossa trama civilizacional atual. Nossos fluxos vitais se tornam mercadoria de consumo e de descarte. Por fim, verifica-se, em nossos dias, uma transformação deveras significativa. Hoje, falamos em Mídia e não mais em Meios de Comunicação Social (MCS). O termo Mídia nos remete a um horizonte a partir do qual compreender a totalidade dos fenômenos, uma autêntica mundividência.
Há uma interconexão que atravessa a totalidade dos fenômenos. Por esta razão, torna-se cada vez mais difícil captar as questões da civilização atual, que se revelam sempre mais em seu caráter multidimensional, com um saber compartimentado e com uma lógica linear. Somos vítimas de uma inadequação entre o saber e a realidade. Como desconstruir essa cultura da funcionalidade e da mercantilização que tem fortemente caracterizado as relações no mundo em que vivemos? Como seguir alimentando mentalidades e atitudes que encarnam uma violência cabal a nós e às demais criaturas? Como desconstruir os processos de desumanização e desnaturalização, ambos produzidos pela “tecnificação”, “mercantilização” e “midiatização” da vida? Como, enfim, seguir submetendo-nos a um saber que se esgota na instrumentalidade e que, portanto, se revela incapaz de nos remeter às questões do sentido e de nos conduzir pelos meandros sutis das sendas da transcendência?
O paradigma hegemônico do mundo em que vivemos é o resultado de uma cumplicidade entre Mercado, Tecnociência e Mídia. Compreendemos paradigma como um conjunto de modelos ou de padrões a partir dos quais a sociedade atual se orienta e organiza o conjunto de suas relações. Em outras palavras, paradigma seria um sistema disciplinado mediante o qual organizamos nossa relação conosco mesmos, com as demais pessoas e com o conjunto da realidade na qual estamos inseridos.
A caracterizar, portanto, o paradigma hegemônico seria a estreita relação entre três transformações em curso no seio da civilização contemporânea: da economia de mercado à sociedade de mercado, da técnica como instrumento à emergência da Tecnociência como horizonte e da comunicação como meio à Mídia como cenário. Essas três transformações compõem a engrenagem que, por sua vez, põe em movimento a civilização contemporânea em seu tríplice processo: “mercantilização”, “tecnificação” e “midiatização” da vida.
No primeiro caso, assistimos a uma grande transformação deflagrada já no início do século passado por K. Polanyi. As leis de mercado, que antes se restringiam ao âmbito da economia, passaram a regular a vida social na sua totalidade. Para descrever esse fenômeno cunharam-se expressões como: “mercantilização ou financeirização da vida”, “absolutização do mercado” e outras. Essas expressões, apesar de fortes, querem chamar nossa atenção para o fato de que nossos fluxos vitais são, nessa nova configuração, reduzidos impiedosamente a simples mercadorias de consumo e de descarte.
Há quem sustente que ingressamos assim em nova fase do Capitalismo ocidental: capitalismo de consumo. Em tal contexto, compreende-se a busca frenética por mercantilizar tudo, mediante o exacerbado inflacionamento das mercadorias visando ao consumo cada vez maior. Em sua nova fase, portanto, interessa ao capitalismo a produção de subjetividades consumidoras. E para incrementar o consumo e o apetite dos sujeitos consumidores é imprescindível que se invista no “fetichismo da mercadoria”.
Tais processos têm se verificado sob o pressuposto da crescente supremacia do Mercado na administração dos fluxos vitais. Em nossos dias, tem se concebido e definido a vida como produto, uma simples mercadoria. Numa palavra, a vida tem se tornado mera invenção humana. E isso graças à inaudita capacidade do capitalismo do século XXI de operar um autêntico seqüestro simbólico das forças vitais. Ele não apenas captura tais forças como também consegue reciclar as resistências a esse seqüestro mediante a produção de slogans publicitários e mercadorias a serem consumidas. Até mesmo nossas bandeiras alternativas tem se tornado objeto de publicidade e, conseqüentemente, reduzidas a mercadorias sedutoras.
Com base em tais análises, o capitalismo neoliberal estaria ultimando sua hegemonia global. Na medida em que vem conseguindo transformar a vida e, portanto, também os valores e símbolos culturais em mercadoria de consumo e de descarte, o capitalismo neoliberal tem consolidado sua hegemonia sobre nossa inteira civilização.
Uma segunda transformação está em curso. No mundo caracterizado pelo paradigma mecanicista moderno, a técnica era utilizada pelo ser humano como instrumento privilegiado na consolidação de seu saber como poder. Com razão, se dizia que a técnica nada mais era que ciência aplicada. De fato, a técnica se prestava, na condição de instrumento, a esse domínio do sujeito pensante sobre os demais seres considerados meros objetos mensuráveis. Concebida como simples instrumento, a técnica era vista como emanação do sujeito, vale dizer, extensão de seus membros visando a potencialização de seu domínio sobre as coisas.
Testemunhamos em nossos dias uma autêntica virada epocal: da idade da técnica para a era da Tecnociência. De mero instrumento de dominação à disposição do ser humano, qual era a técnica, percebemos que a Tecnociência tornou-se horizonte último no interior do qual se desvelam todos os âmbitos da experiência. Cunhou-se o termo “tecnosfera” para exprimir uma espécie de horizonte no interior do qual se produzem novas mentalidades e visões de mundo. Supera-se, por exemplo, aquela visão mecanicista e geométrica da física clássica e sua função domesticadora. Agora, na era da Tecnociência, a natureza é decomposta e, afinal, recriada segundo os moldes da ciência informática e da biologia molecular. Em outras palavras, as novas tecnologias não são mais meros instrumentos a serviço do ser humano na perseguição de determinados fins. Elas se tornaram, para todos os efeitos, produtoras de necessidades das quais o ser humano se torna cada vez mais dependente.
O ser humano, nas contundentes palavras do filósofo italiano, Umberto Galimberti, “não é mais sujeito, mas algo disposto no horizonte desvelado pela Tecnociência, que é, afinal, o que decide o modo de ele se perceber, sentir, pensar e projetar”. O ser humano não é mais capaz de se perceber fora do mundo disposto pela Tecnociência, uma vez que ela se tornou o ambiente no qual o ser humano chega ao conhecimento de si. Por essa razão, justifica-se o uso do termo “Tecnociência” em vez de “técnica” simplesmente ou do adjetivo “científico-técnico”. A Tecnociência tornou-se o horizonte de fundo dentro do qual a própria ciência encontra ou não sua legitimidade.
Considerando, enfim, que a Tecnociência, em nossos dias, se tornou horizonte imprescindível de compreensão do ser humano em relação ao mundo e a si próprio, então talvez fosse o caso de redirecionarmos aquela pergunta incontornável: não mais o que nós poderemos fazer com a tecnologia, mas o que as tecnologias podem fazer de nós?
Falávamos acima de um processo de fetichização das mercadorias. A Mídia tem desempenhado uma função importantíssima nesse processo de fetichização. Mesmo ostentando uma pretensa neutralidade asséptica, a Mídia não transmite informações de forma objetiva. No ato mesmo da transmissão ela constrói realidades. E ao fazê-lo, ainda que de maneira sutil, trai sua posição face ao que transmite. A Mídia se tornou, ademais, um mundo fora do qual não se pode mais viver. Não se pode mais prescindir desse mundo midiático. Tem se tornado impossível uma experiência diferente da proposta pela Mídia que, ao transmitir, constrói fatos e situações mediante sua interpretação interessada. E a combinação entre Mercado e Mídia tem se revelado profundamente eficiente; os interesses escusos do Mercado são veiculados na Mídia em seu caráter profundamente sedutor. Excelentes estudos têm mostrado uma forte cumplicidade entre Mídia e Mercado na criação e manutenção dos processos descritos acima, tais como: “absolutização do Mercado”, “mercantilização da vida”, “fetichização da mercadoria”.
Na tentativa de acolher as questões postas acima, problematizando-as, a teologia cristã tem se colocado em permanente estado de “travessia”. E, ao longo dessa travessia, ela tem advertido a necessidade de se submeter a um processo de transformação que alcance suas próprias raízes. Essa seria a condição para que a teologia contribua de maneira responsável ao diálogo acerca das questões que nos ocupam nesse início de século XXI.
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