sexta-feira, 3 de junho de 2016

Só por interesse

É difícil acreditar, mas em outros tempos a busca pelo dinheiro não era única meta na vida.
E então a palavra “interesse” começou o seu processo de desintegração e foi ficando perversa.
E então a palavra “interesse” começou o seu processo de desintegração e foi ficando perversa.
Por Max Velati*
O caso do estupro coletivo já está sendo debatido por gente mais preparada e mais bem informada do que eu. Só queria então registrar o óbvio: trata-se de um episódio repugnante e gerou opiniões e debates também repugnantes. Sem que saibamos ocorrem toda semana centenas, milhares de casos igualmente trágicos e covardes. O índice de registro policial para este crime beira os 10%, uma fração mínima do que acontece nas diversas camadas sociais e não apenas no mundo funk ou no tráfico das favelas.
Se posso acrescentar alguma coisa ao debate é deixar aqui a minha opinião de que existe a “cultura do estupro”, mas também a “cultura de espancar idosos”, a “cultura de espancar crianças”, a “cultura da minha religião é mais verdadeira do que a sua”, a “cultura de vamos botar fogo na escola só por farra”, como aconteceu esta semana no interior de Minas Gerais.
Na minha opinião tudo isso está relacionado. Se faltam os alicerces mais básicos para estruturar o ser humano para que seja de fato sadio, as suas perversidades vão se multiplicar e buscar sem freios qualquer caminho de expressão. Monstros são monstros e fazem monstruosidades. Dito isso, abandono este tema na esperança de que alguma coisa aconteça, mas confesso o meu desconforto em ter que admitir que não espero que nada realmente aconteça, pelo menos nada além de fotos coloridas nas redes sociais, cartazes de protesto com erros de ortografia e corpos pintados nas vias públicas.
Deixando este tema, passo ao seguinte: o governo Temer aprovou na calada da noite o aumento do funcionalismo e nesta canetada o impacto previsto é de R$ 58 bilhões no orçamento onde já faltam 170 bilhões. No mesmo compasso: o presidente Maranhão, grande líder republicano na Câmara, está fazendo consultas sobre meios para aumentar regalias, posses e privilégios do cargo.
Chego então finalmente ao tema desta semana perguntando com absoluta sinceridade: como chegamos até aqui? O que aconteceu? Não estou falando de golpe, contragolpe, por favor...estou falando da Grande Questão...da Grande Causa para estes efeitos. Como chegamos até aqui como povo, mundo, nação, planeta, humanidade....
Sei que é difícil acreditar, mas em outros tempos a busca pelo dinheiro não era a única meta na vida. Era possível dedicar sinceros esforços para obter honra ou glória, por exemplo. Muita gente boa passou a vida buscando a consciência, outros notáveis buscaram a beleza na arte e outros ainda buscaram com fé religiosa o conhecimento científico. A ideia de levantar da cama todos os dias, inspirar e expirar com o único propósito de correr atrás de dinheiro não é um impulso tão natural quanto parece.
A busca pelo louvor e pela glória merecem a nossa atenção, pois estes dois ingredientes fizeram o Império Romano conquistar o mundo. Está certo que estamos falando de vaidade, pecado, coisa e tal. Mas para os governantes do Império os interesses do poder eram os interesses de Roma. A coroa de louros só teria valor se o Império triunfasse e crescesse. De um modo estranho o pecado acabava ganhando um verniz de virtude, já que os interesses pessoais do imperador estavam sempre a serviço dos interesses dos romanos.
E então a palavra “interesse” começou o seu processo de desintegração e foi ficando perversa.
O interesse para os governantes passou a significar exclusivamente os seus próprios interesses. Grupos se formaram ao redor de interesses comuns até que “interesse” passou a significar apenas vantagem econômica, a busca do lucro e do privilégio. Podemos perceber isso em nosso laboratório com o comportamento do presidente Maranhão, empossado desastradamente há algumas semanas, mas já faminto por um imóvel extra em Brasília.
Adam Smith já tinha percebido tudo isso quando escreveu: “um aumento de fortuna é o meio pelo qual a maior parte dos homens propõe e deseja melhorar a sua condição. É o meio mais comum e mais óbvio”.
Pensando nos 11 milhões de desempregados não posso me dar ao luxo de ficar debatendo se foi golpe ou não, se a presidente afastada volta ou não ao cargo. Já passamos deste ponto. Estou mais interessado em saber se vão surgir líderes que tenham interesse pela glória e pelo louvor mais do que pelo dinheiro. Esta é a única maneira que vejo de instalar no poder a coisa mais próxima de um defensor dos interesses da nação. O interesse não mente. Como bem definiu o Duque de Rohan, “Os príncipes dão ordens a seu povo e o interesse dá ordens aos príncipes”.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é professor de esgrima e chargista de Economia da Folha de S. Paulo. Publica no Dom Total toda sexta feira.

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