sexta-feira, 29 de julho de 2016

Por uma teologia libertadora

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O Deus de Israel se revela na libertação dos oprimidos e não na opressão do faraó.
Deus está do lado dos pequenos, rompendo com a lógica da miséria e injustiça que oprime o seu povo.
Deus está do lado dos pequenos, rompendo com a lógica da miséria e injustiça que oprime o seu povo.

Pe. Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*

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A teologia se concebe e se configura como inteligência da fé. Trata-se de uma reflexão que busca apreender, explicitar e elaborar teoricamente a experiência de fé. Mas não só: a teologia está a serviço da fé, oferecendo-lhe luz para que seja mais bem vivida. Essa fé, à qual a teologia procura compreender e servir, é abertura e adesão à revelação de Deus. Essa revelação não é uma entrega de verdades e doutrinas sobre Deus, mas é Ele mesmo que doa sua realidade, que se comunica com o ser humano. Assim, a fé, como resposta a essa revelação, não consiste em simples aceitação de verdades ou doutrinas sobre Deus, mas na acolhida real de Deus, deixando-se configurar por Ele, realizando a sua vontade. Também a teologia, como intelecção da e serviço à fé, encontra seu lugar como captação, reflexão e serviço a essa realidade de Deus que se doa. Deus é, portanto, fundamento último da fé e da teologia. Mas o que Ele revela de si mesmo e que configura a fé e a teologia?

O Deus que se revela na experiência do povo de Israel e em Jesus de Nazaré é o Deus parcial com e libertador dos pobres e oprimidos. É isso que aparece, por exemplo, no Êxodo, quando Ele chama Moisés para libertar o povo: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios” (Ex 3,7-8a). Ele revela seu nome no ato mesmo de libertar seu povo (cf. Ex 3,14) e este o proclama como “o Deus dos humildes, socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o abrigo dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jd 9,11). Na vida e na missão de Jesus de Nazaré, revelam-se essa mesma parcialidade de Deus com os pobres e oprimidos. São eles os destinatários da missão de Jesus (cf. Lc 4,18-21), a eles pertence o reino de Deus (cf. Lc 6,20) e são eles o critério e medida da nossa entrada no reino (cf. Mt 25,31-46). Portanto, o Deus de Israel e de Jesus se revela na libertação dos oprimidos e não na opressão do faraó; manifesta-se na práxis libertadora de Jesus e não na práxis opressora do César. Isso nos mostra que Deus está do lado dos pequenos, rompendo com a lógica da miséria e injustiça que oprime o seu povo. Isso também nos questiona de que lado nós estamos e por quem optamos. Por isso, a parcialidade de Deus tem consequências fundamentais para a fé cristã e, por conseguinte, para a teologia. A fé cristã, que é adesão a esse Deus e realização de sua vontade, deve ser uma fé comprometida com os processos de libertação, uma fé que opera pelo amor (cf. Gl 5,6) e nos aproxima dos caídos pelo caminho (cf. Lc 10,25-37) para levantá-los. A teologia que daí surge não pode ser outra senão uma teologia libertadora. Nisso está sua fidelidade à revelação, sua identidade e relevância históricas.

Isso que deve ser toda teologia é levado a termo pela teologia da libertação, reflexão que surgiu no continente latino-americano, marcado pela situação de miséria e pobreza injustas e pela opressão que massacra e mata os pequenos desse continente. É preciso recordar que, nesse continente, a maioria da população, ricos e pobres, diz-se cristã e, muitas vezes, Deus e Jesus são “usados”, seja para justificar a miséria e a opressão em que vive grande parte do povo, seja, ainda, para sublimar essas realidades, alienando as pessoas da situação em que vivem. Por isso, a teologia que aqui surge tem uma missão profética de desmascarar essas falsas imagens de Deus e anunciar o verdadeiro Deus. Essa teologia, portanto, não traz simplesmente um novo tema (a libertação) para a reflexão (que, aliás, não é novo, pois pertence a mais genuína tradição bíblica e teológica, embora tenha sido e continue a ser negligenciado ou até mesmo sufocado), mas é um novo modo de pensar os conteúdos da fé, à luz da práxis histórica de libertar os oprimidos pelas estruturas injustas.

Essa teologia se caracteriza por ser tanto uma práxis transformadora, quanto uma reflexão com elaboração e formulação teórico-conceitual dessa práxis. Não existe teoria sem práxis, nem práxis sem esse momento reflexivo. A práxis levada a cabo pela teologia da libertação é a mesma práxis de Jesus: anúncio e realização do reino de Deus. Por isso, mesmo que, muitas vezes, se dê ênfase a um ou outro aspecto (economia, política, gênero, cultura etc.), a teologia da libertação não se reduz a um deles, visto que o reino de Deus está relacionado com todas as dimensões da vida humana. Quanto à reflexão dessa práxis, mesmo que ainda não seja suficiententemente elaborada, e até mesmo protelada, em muitos casos, pelas urgências pastorais, os esforços e pretensões vão sempre no sentido de que ela seja verdadeira teologia, ou seja, reflexão da experiência de fé no Deus revelado na história do povo de Israel e na práxis de Jesus de Nazaré como o Deus libertador e parcial com os pequenos. A teologia da libertação se configura, por isso mesmo, como reflexão sobre a realização do reino de Deus.

É por isso que essa teologia dá prioridade à práxis, pois esta é central tanto na revelação de Deus, quanto na fé cristã. A revelação não é, como já dissemos, entrega de verdades e doutrinas sobre Deus, mas doação de sua própria realidade e convite a configurar a vida de acordo com sua vontade, com seu reino. A fé cristã consiste, portanto, na aceitação e adesão a Deus, realizando sua vontade, construindo seu reino. Mas a realização da vontade de Deus ainda parece algo muito genérico se não se determina em que direção ela vai. A vontade de Deus ou o reino de Deus, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento, caracteriza-se como parcialidade e defesa dos pobres e oprimidos. Por isso, o pobre ocupa lugar central tanto na práxis transformadora quanto na reflexão sobre essa práxis, características da teologia da libertação. E se quisermos ser fiéis ao Deus revelado na história do povo de Israel e na vida e missão de Jesus de Nazaré, devemos não só nos inserirmos em seu mundo, como também assumir suas dores e sofrimentos, defendendo-os dos sistemas injustos e opressores; também aprendendo com eles e seu modo de viver como se constrói verdadeiramente o mundo mais justo, fraterno e solidário, semente do reino de Deus.

É preciso ter consciência, porém, de que o anúncio e a realização do reino de Deus não se dão no mundo, sem mais, mas num mundo marcado pela injustiça, pela miséria e pela opressão, num mundo que é anti-reino que age contra o reino de Deus. Portanto, anunciar e realizar o reino de Deus acontece no rompimento com a lógica que impera nesse mundo e, nesse sentido, a teologia da libertação se torna profética, pois anuncia o querer de Deus, mostrando-nos seu verdadeiro rosto e do lado de quem está e, ao mesmo tempo, desmascarando os sistemas injustos que deturpam a imagem de Deus e faz vítimas a tantos homens e mulheres. A tarefa não é fácil. As vitórias são sempre pequenas e parece sempre uma luta de Davi contra Golias. No entanto, há esperança e os pobres é que nos dão essa esperança e a tornam realidade quando, todos os dias, mostram-nos que a solidariedade, a justiça e o amor são maiores e são vencedores. A eles nos unimos com nossa reflexão e práxis a fim de que possamos construir o reino de Deus que vai se fazendo presente em cada organização popular, em cada luta por dignidade e melhores condições de vida, em cada sorriso dos que lutam sem medo por um mundo melhor. É pelo sonho desse mundo que existe a teologia da libertação. É por esse mundo que a nossa teologia deve ser libertadora.

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*Antônio Ronaldo Vieira Nogueira: Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) – Belo Horizonte/MG e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte/CE.


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