sexta-feira, 29 de julho de 2016

Uma pastoral libertadora no contexto urbano

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A missão de todas pastorais é ser a voz de Deus libertador para os oprimidos da cidade.
Devemos perder um pouco o ranço de uma Igreja de massa para uma Igreja de fermento.
Devemos perder um pouco o ranço de uma Igreja de massa para uma Igreja de fermento.

Por Pe. José Almir da Costa*

Vertiginosamente, após a Segunda Guerra Mundial, na confluência de vários fatores econômicos, políticos e sociais, presenciamos um fato social de grande envergadura e de duração imprevisível: a migração do campo para cidade. Em 50 anos passamos de uma população excessivamente rural para uma massivamente urbana. Consequentemente, esse fenômeno trouxe desafios enormes para a sociedade, afetando-a em cheio e provocando a reconfiguração da vida cristã na cidade cujo critério e medida é Jesus de Nazaré e sua justiça aos pequenos.  

Esse movimento migratório escancarou escandalosamente a pobreza. Não que a cidade seja mais pobre do que o campo, no entanto, em virtude da cidade se caracterizar pela divisão de bairros, os quais são colocados justapostos entre ricos e pobres, construiu-se um aglomerado de pobres no mesmo espaço físico. Forma-se o cinturão da pobreza chamado de periferias ou favelas. A separação geográfica aumenta: os ricos ignoram os bairros pobres. Os benefícios políticos centram-se nos bairros mais nobres da cidade. Não tem um bairro nobre que não receba maior assistência do Estado. Nesse sentido, a opção dos governos das cidades é sempre pelo poder da riqueza. Cabe-nos perguntar qual é a opção da ação pastoral, como atividade eclesial que tem como modelo e normatividade a vida e a opção de Jesus de Nazaré?

Sendo assim, encontramos dois limites da ação pastoral: o primeiro, saber se de fato a Igreja fez opção pelos marginalizados da cidade. Esses são realmente as pérolas preciosas da Igreja? Nem sempre essa resposta é tão clara e definitiva. Às vezes assumimos o discurso, visto que se tirarmos os pobres como foco prioritário da missão da Igreja acabamos por abandonar o evangelho de Jesus Cristo. No entanto, nas atividades pastorais, não damos o acento necessário às questões sociais que maltratam e matam os pobres.

Razão disso, segundo Comblin, é que o agir social da Igreja passa por um esfriamento, em boa medida, incentivado por um clero que não se preocupa com a dimensão social da fé, de forma que se torna um cristianismo que não procura associar à fé o agir social. A pregação do clero volta-se quase sempre para conservação e a expansão da própria Igreja. Não há muita preocupação quanto à vivência do evangelho. Quem consegue conservar as estruturas paroquiais já é considerado bom padre, vale dizer, é até aplaudido por essas conquistas. Isso gera ilusão no ministério, assim como acomodação. Até porque, agindo-se dessa forma, ganha-se bastante segurança pessoal. Criticar, a partir da fé, as realidades de injustiça social, de forma profética, provoca perseguição e insegurança. E muitos não se ordenaram para isso.

Porém, pensando de acordo com o evangelho, certamente o encontro com Deus realiza-se no encontro diário com o ser humano, sobretudo e de modo particular com o pobre, com o marginalizado, com o rejeitado. Ainda nessa mesma linha, constata-se que na cidade estão os pobres, os rejeitados, os marginalizados. Ali Jesus espera os seus discípulos. Naquele tempo, o Samaritano encontrou o seu próximo ferido e abandonado numa estrada. Hoje em dia esse próximo está nas cidades. Aí estão eles, aos milhares e milhões. Os discípulos de Jesus Cristo não precisam andar muito para viver e compartilhar o evangelho. As cidades esperam por nossa ação, sobretudo os muitos pobres que ela produz. Estes precisam de nosso cuidado especial como seguidores de Jesus de Nazaré.

O segundo limite da ação pastoral urbana, provém da divisão das paróquias. O modo de planejar as ações é muito voltado para o âmbito particular das paróquias: cada paróquia cria seu mundo próprio, ignorando completamente os grandes problemas sociais da cidade. Quando muito faz, limita-se a olhar algumas realidades mais gritantes dentro do território paroquial. Necessita-se de uma pastoral que contemple a totalidade da cidade e dessa forma toda Igreja arquidiocesana ou diocesana faça opção pelos mais sofridos. A dimensão social da fé não deve ser missão unicamente das assim conhecidas pastorais sociais, mas de todas as atividades pastorais desde a catequese até o apostolado da oração. O cuidado com os que mais padecem não é algo que se pode deixar de lado, mas é uma opção que sem a qual pode ser tudo, menos Igreja de Jesus de Nazaré.

Obviamente não temos receitas prontas para enfrentar esses dois limites da ação pastoral. Seguindo, porém, um pouco a linha de dois mestres que pensaram profundamente a ação pastoral da Igreja na cidade, José Comblin e João Batista Libanio, que deixam para a Igreja atualmente dois indicativos fundamentais, os quais elencamos: o primeiro, multiplicar os grupos de rua que se reúnam segundo suas identidades para juntos meditarem a Palavra de Deus. Uma espécie de volta às pequenas células eclesiais ou como às vezes chamamos, uma Igreja doméstica. Perder um pouco o ranço de uma Igreja de massa para uma Igreja de fermento. Custa muito aos lideres da Igreja quererem ser uma Igreja de fermento, o florido das massas ainda nos encanta mais.

O segundo indicativo que esses dois mestres deixam: precisa-se planejar a ação pastoral. A falta de planejamento indica que não sabemos o que queremos e para onde queremos ir. Planejamento não significa engessamento da ação do Espírito, mas escutar com atenção o que o Espírito diz à Igreja atualmente. Esse planejamento deve olhar a cidade e suas diversas complexidades e, assim, perceber os grandes problemas estruturais que excluem e matam os filhos de Deus que escolheram a cidade como terra prometida.  Mas sabemos que essa terra prometida não vem se não lutarmos juntos. O certo é que, pegando a passagem do êxodo, Deus continua vendo a opressão do seu povo, ouvindo suas queixas contra os opressores, e compadecendo dos seus sofrimentos, consequentemente descendo para libertar da opressão dos poderosos (cf. Ex 3, 7-8). A missão de todas pastorais é ser a voz de Deus libertador para os oprimidos da cidade.

Diante dos desafios que essa opção pelos pobres nos coloca, pergunta-se: seguiremos alimentando uma pastoral sacramental, muitas vezes desvinculada dos problemas sociais, mas como uma forma de consolo das inúmeras dificuldades para se viver na cidade, uma espécie de psicologização da fé, problema de autoestima, de conforto espiritual? Ou faremos o esforço de recuperar a mordência profética da fé, que faz justiça aos pequenos ao longo da história e que arrisca, ao mesmo tempo, não ser a Igreja numericamente maior, mas acredita que sua missão é ser sinal da presença do reinado de Deus na cidade, como fermento na massa (cf. Mt 13, 33), grão de mostarda (cf. Mt 13, 31-32), tesouro escondido (cf. Mt 13, 44), pérola preciosa (cf. Mt 13, 45-46)?

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*José Almir da Costa: Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte. Mestre em práxis teológica pela FAJE. Atualmente Pároco da Paróquia Menino Deus em Alto Santo –CE.

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