sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A invisibilidade das mulheres nas religiões

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Ninguém pode julgar-se não tendo a ver com esse fenômeno, sobretudo no cristianismo.
A invisibilidade das mulheres se constitui um problema a que todas são convocadas a se envolver.
A invisibilidade das mulheres se constitui um problema a que todas são convocadas a se envolver.

Por Tânia da Silva Mayer*
Não, nós não estamos falando daquela mulher invisível, protótipo da “gostosa”, inventado e disseminado pela mídia, como objeto masculino de satisfação, sexual e afetiva. Nós estamos falando de mulheres reais, com as quais nos encontramos cotidianamente no interior das religiões, nas quais procuram significar suas existências na relação com o Transcendente. Nós estamos falando da minha mãe e da sua, da minha irmã e da sua, da minha tia e da sua avó, da minha amiga e da sua namorada, mulheres de fé, que se sentem interpeladas por uma palavra, provocadas pelos ritos e símbolos e convocadas a uma práxis comum, como fruto de um exercício maior do grupo religioso a que elas pertencem, se de fato pertencem.

É sobre a invisibilidade dessas mulheres reais, companheiras contemporâneas da nossa vida, que estamos falando. Portanto, ninguém pode julgar-se a si mesmo como não tendo nada a ver com esse fenômeno observado nas religiões, sobretudo no cristianismo, o fenômeno da invisibilização das mulheres. Quem são as mulheres? O que elas significam para as religiões? Há lugar para elas nesses grupos? Que lugar é esse? Como o corpo delas é tratado? Elas são sujeitos dos processos e decisões? São “senhoras” de seus destinos? Que mulheres, para quais religiões? As respostas a todas essas questões, e às outras que aqui não foram feitas, mas que certamente estão sendo feitas nas periferias sociorreligiosas, à luz de um feminismo inconformado com a invisibilidade e anonimato das mulheres, essas respostas merecem espaço para serem esmiuçadas na sua gravidade e complexidade. A tentativa da síntese quer provocar o debate sobre essas questões, a fim de que não sejam silenciadas pelas mesmas forças que invisibilizam as mulheres no interior das religiões.

Por invisibilidade compreendemos o fenômeno provocado por alguém (pessoal ou coletivo) contra outrem, na tentativa de torná-lo invisível no interior de um grupo. Precisamente, a invisibilização das pessoas é a maneira mais radical de excluí-las. É roubar-lhes seu lugar no mundo para fazer-lhes seres inexistentes. Quem foi invisibilizado simplesmente não existe. E muitas razões podem corroborar esse processo de invisibilização das pessoas. Preconceitos arraigados de mentes arbitrárias, pessoais ou coletivas, normalmente estão na gênese desse perigoso fenômeno vislumbrado nas sociedades e religiões. Nas religiões cristãs, esse fenômeno é percebido, e não é de hoje, com relação às mulheres, mas não só. Num primeiro momento deveríamos nos questionar se essas religiões “cristãs” estão fundamentadas na palavra e na práxis de Jesus, Ele que promoveu abundantemente a visibilidade e a saída do anonimato e da exclusão de todas aquelas e aqueles que eram excluídos pelos sistemas sociais e religiosos de sua época. Em seguida, devemos apontar como a invisibilidade das mulheres se constitui um problema a que todas são convocadas a se envolver.

O modelo machista e patriarcal, centrado na figura do varão, corrobora, sobremaneira, há épocas, com esse fenômeno da invisibilidade feminina no cristianismo. O catolicismo é uma boa amostra de um sistema no qual as mulheres simplesmente não existem, não em sua plenitude e naquele pleno potencial a que foram criadas. Para o catolicismo, a mulher é nada mais e nada menos que uma procriadora e parideira, destinada ao casamento e ao cuidado do lar, do marido e dos filhos. Sua sexualidade é restringida por uma compreensão machista de lei natural que as rebaixa como um gênero inferior na criação humana. Obviamente, essa compreensão será mais ou menos cruel com respeito às mulheres a que estiver referida.

Desse modo, a ideia de procriadora, parideira e do lar será tanto mais pesada para as mulheres que são pobres, negras, lésbicas, deficientes, transexuais, do interior, analfabetas, etc., ou seja, mulheres expostas às vulnerabilidades sociais. Infelizmente, as religiões, por meio do machismo, contribuirão para a subjugação dessas mulheres, e no tocante à cidadania eclesial, elas serão tão mais impedidas de exercê-la e, nesse sentido, serão tão mais invisibilizadas que as mulheres brancas burguesas, revelando grupos religiosos do poder que segregam, invisibilizam e excluem. O que se percebe é que por trás de uma invisibilidade comum, fruto de um patriarcalismo machista, há também uma invisibilização de cunho social, de modo que quanto mais uma mulher é excluída na sociedade tanto mais ela será invisibilizada na religião, de modo que se ela tiver uma participação no sistema religioso, esta nunca chegará a ser plena e ativa. Sua participação estará sempre condicionada e restringida.

Para não incorrer à injustiça, é importante destacar que há cenários eclesiais em que a participação dessas mulheres em condição de vulnerabilidade social e invisibilidade religiosa é superada por uma pastoral que “escuta o que o Espírito diz à Igreja”. Nesses cenários, normalmente periféricos e rurais, as mulheres das quais falamos são protagonistas de religiões acolhedoras e menos preocupadas com o poder. Realizam verdadeiro serviço gratuito. Por outro lado, nos grandes centros eclesiais nós não as veremos transitar, ou as veremos muito pouco. Uma rápida olhada ao nosso redor e perceberemos o quanto somos responsáveis, consciente ou inconscientemente, pela invisibilização dessas mulheres. Quantas mulheres negras animam e coordenam as comunidades eclesiais que conhecemos? Quantas mulheres lésbicas frequentam as cerimônias religiosas das quais participamos? Quantas mulheres pobres são próximas dos representes dessas religiões das quais pertencem? Quantas têm acesso a eles? Quantas e quem são as mulheres com deficiências com atividades nas nossas comunidades? Há mulheres transexuais entre nós, quem são elas?

Vejamos, estamos falando dessas mulheres a partir de um nível primário de participação. Isso nem sequer seria perguntar-se pela participação dessas mesmas nas instâncias decisórias do cristianismo católico. Nessas instâncias maiores, essas mulheres não existem. Em sua maioria, existem homens brancos normatizando a vida de pessoas que eles nem conhecem. Deveremos sempre nos interrogar, mesmo quando as coisas pareçam tomar rumos renovadores: a tão aclamada comissão que irá analisar o diaconato feminino no Vaticano, dessa comissão, quantas mulheres negras na comissão? Quantas latino-americanas? Quantas mulheres da periferia do mundo? Essas mulheres das quais estamos falando são invisibilizadas, há séculos. Mas isso não pode continuar. Resistiremos.

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*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte.

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