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Os momentos de crises são tempos profícuos para as narrativas da vida.
Por Tânia da Silva Mayer*
Não há melhores narradores dos tempos de crises que aqueles e aquelas que se encontram submersos na obscuridade de uma época sem esperanças. A vida que pulsa criticamente nesses tempos difíceis é a mais capacitada para dizer o que anda acontecendo e, também, para propor outros rumos e outras direções. As vozes que se levantam para narrar a problemática histórica na qual se encontram, embora sejam condicionadas à sua própria experiência e visão de mundo, têm plenas condições para ler os acontecimentos hodiernos. Tais leituras não podem eximir-se da tarefa de recordar o passado, contemplar o presente e propor um futuro. Sem cumprir essa tarefa, correm o risco de se tornarem “profetas” caducos.
Os tempos de crises são bastante oportunos para ler e narrar a vida, como vimos em nosso artigo anterior. Os momentos de crises são tempos profícuos para as narrativas da vida, pois são elas que reacendem a fagulha da esperança que foi enfraquecida pela crise. O povo de Deus compreendeu essa dinâmica e a promoveu muito bem. Após a morte de Jesus, seus seguidores e seguidoras conviveram com o desejo de segui-lo e com a desilusão, fruto das dificuldades na divulgação da sua mensagem. As pressões externas e as perseguições somadas à distância que estiveram do Mestre fizeram com que um mal estar surgisse nas comunidades que se organizavam ao redor de uma mesma fé. Foi concomitante a estas dificuldades que lideranças perceberam a necessidade de narrar os fatos que envolvem a vida de Jesus e a ele se relacionam. E numa espécie de catequese para o Mistério da morte e ressurreição de Cristo, propuseram-se a narrar a própria vida comunitária no horizonte Pascal de Jesus, como gênese da própria experiência cristã. Desse modo é que os Evangelhos são compreendidos como narrativas para os tempos críticos, em que cristãos e cristãs urgenciam fundamentar e fortalecer a fé.
O exílio da Babilônica Talvez a maior delas tenha sido o exílio na Babilônia. Era o ano 597 a.e.c., ou outro mais próximo a este, Nabucodonosor da Babilônia iniciava mais uma campanha violenta e um dos momentos mais sofridos para o povo. Sua política era muito clara: ele ocupou e sitiou a cidade de Jerusalém, e deportou muitos habitantes para a Babilônia. Os nobres do povo, a elite artística, sacerdotal, profética foi despatriada; o templo foi destruído juntamente com a cidade. Os pobres ficaram às mínguas. Eram tempos difíceis:
Ah!, Como ficou abandonada a cidade populosa. Aquela que dominava as nações parece uma viúva. A antiga capital das províncias agora é escrava. Banhada em lágrimas de dor, chora a noite toda. De todos os antigos amantes, nenhum a consola. Os antigos aliados a enganaram, parecendo inimigos. Como um triste e pobre escravo, foi Judá para o exílio. Morar entre povos gentios, onde paz não encontra. Quem com dura opressão o perseguia conseguiu agarrá-lo. Deploram-se os caminhos de Sião, ninguém para a festa. As portas estão destruídas, choram os sacerdotes. Nossas jovens estão deprimidas, é a cidade da amargura. Estão vitoriosos os opressores, felizes, os inimigos. (Lm 1,15a.)
Em meio a tantas crises, só a esperança lhes dizia respeito. Esperança que foi encarada como oportunidade para reconhecer limites e construir uma nova vida. Particularmente, os exilados na Babilônia foram distanciados da sua pátria, da sua terra, do seu templo, dos seus costumes. Da condição de nobres, tornaram-se escravos de uma gente que não era a sua. Isso significou a conversão dos valores dos que foram exilados. Por outro lado, os pobres que restaram na cidade desolada, muitos destes foram escravizados nos tempos de paz, tornaram-se sujeitos da própria vida que continuava ameaçada pelos povos estrangeiros. Restava, agora, dar tempo ao tempo.
Precisamente, essa parada no tempo significou um respiro para o povo, respiro porque nestas circunstâncias é preciso reconhecer-se e reconhecer a vida no jogo da história; respiro para recordar-se dos tempos de paz, outrora vividos; respiro para esperar contra toda esperança. O exílio da Babilônica trouxe pranto aos rostos sofridos, mas, por outro lado, trouxe a esperança a um povo que vagava sem sentido havia tempo. E não estamos falando de uma simples esperança, mas daquela esperança que resiste à tristeza e à dor desejando que a vida possa ser maior. E será.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
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