por Helio Gurovitz
Exatos 56 anos atrás, em 26 de setembro de 1960, foi ao ar o primeiro debate pela televisão entre candidatos a presidente dos Estados Unidos. Quem ouviu pelo rádio rádio dizia que RIchard Nixon vencera. Quem assistiu pela TV vira o suor no rosto de um Nixon mal-barbeado, seu terno amarfanhado – e atribuíra a vitória ao jovem senador por Massachusetts John F. Kennedy. O resultado nas urnas é conhecido.
Desde então, debates televisivos têm sido essenciais para a escolha de candidatos, não apenas nos Estados Unidos. Com um quinto dos eleitores americanos indefinidos entre a democrata Hillary Clinton e o republicano Donald Trump, o primeiro encontro entre os dois, marcado para hoje à noite na Universidade Hofstra, em Long Island, Nova York, será decisivo.
O debate entre Kennedy e Nixon também inaugurou uma nova era nas campanhas eleitorais. A aparência e a atitude dos candidatos diante das câmaras passou a ser mais importante que suas ideias. É um lugar-comum entre consultores políticos que a melhor forma de determinar o vencedor num debate é assisti-lo sem som. Pouco importa o que dizem os debatedores. Importa sua imagem.
Em 56 anos de primado da TV sobre as campanhas, nenhum candidato soube explorar tão bem essa divisão quanto Trump. Ele não foi o primeiro a chegar à política apoiado numa imagem artificial, construída pela televisão e pela associação de seu nome a todos os empreendimentos que ergueu numa longa trajetória no mundo dos negócios, cheia de derrapadas, dívidas e falências. Mas é o primeiro a chegar sem nenhuma experiência de governo.
Trump entendeu como niguém que, para o eleitor médio, assim como para o consumidor médio, apenas a imagem importa. “VIrando de cabeça para baixo a frase de Daniel Patrick Moynihan (sociólogo e político democrata ligado ao clã Kennedy, autor da frase: 'cada um tem direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos'), o auto-inventado e auto-gerido candidato se sentiu no direito de ter os próprios fatos”, escreveu Joseph Lelyveld sobre Trump logo depois das convenções de julho na New York Review of Books.
Nenhum outro político atingiu tal nível desprezo pela verdade. Basta conferir as avaliações das afirmações de Trump feitas pelos sites de checagem factual FactCheck.org e PolitiFact, ou então investigações recentes do New York Times e do Politico, que levantaram suas mentiras ao longo de uma semana. Trump, afirma o Politico, soltou uma a cada 3 minutos e 15 segundos em cinco horas de discursos.
Numa reportagem de capa recente, a revista britânica The Economist afirmou que Trump é o exemplo mais acabado de uma nova era na política global, batizada "Era da Pós-verdade”. “Ele habita um mundo fantástico onde a certidão de nascimento de Barack Obama é falsa, o presidente fundou o Estado Islâmico, os Clintons são assassinos, e o pai de um rival estava com Lee Harvey Oswald antes de ele matar John F. Kennedy”, diz a Economist. “Trump é o maior expoente da política da ‘pós-verdade’ – a confiança em afirmações que ‘parecem verdade’, mas não têm nenhuma base nos fatos.”
O humorista Stephen Colbert criou até um termo para se referir a esse tipo de afirmação: “truthiness”, algo como “verdadice” em português. Não importa exatamente se os fatos são aqueles, importa apenas se são convincentes, se o eleitorado acredita. Importa, sobretudo, o efeito na imagem do candidato. Trump está longe de ser o único fabulador na política contemporânea – Hillary não é exatamente conhecida pela sinceridade. Mas Trump navega como ninguém no universo pantanoso das “verdadices” para tirar proveito delas.
Jornalistas, analistas e sites de checagem terão na certa diversão durante o debate de hoje à noite, ao tentar trazer as frases de Trump e Hillary para o plano da realidade. O colunista de imprensa Jim Rutenberg defendeu no New York Times que os moderadores intervenham diante de fatos flagrantemente absurdos – como fez Max Frankel quando o então presidente Gerald Ford afirmou, num debate com o democrata Jimmy Carter, em 1976, que a União Soviética não era a potência predominante no Leste Europeu. A gafe custou pontos para Ford, e Carter venceu a eleição.
Mas há, paradoxalmente, certa ingenuidade naqueles que transformaram a disputa contra Trump num jogo de “pega na mentira”. Desde os tempos de Kennedy e Nixon, todos sabem que a imagem dos candidatos e o efeito de suas declarações é mais relevante que o conteúdo. Nas últimas décadas, Hillary talvez seja a candidata com mais experiência, tem preparo inegável e conhecimento invejável das engrenagens do governo – e ainda assim é vista com receio, está associada à elite política, aos banqueiros e não inspira confiança num eleitor que se sente à margem das decisões e rumos do país. Trump talvez nem tivesse chance se o candidato democrata fosse qualquer outro.
Embora Trump tenha um talento incomparável diante das câmaras – comprovado em seus discursos e programas de TV –, o debate de hoje oferece uma chance ímpar a Hillary para inverter sua trajetória declinante nas pesquisas. “Ao contrário de Trump, ela chega aos debates como veterana de cinco debates um-a-um contra Sanders (mais cinco no ciclo eleitoral de 2008 só contra Obama e três contra Rick Lazio na corrida de 2000 ao Senado)”, afirma James Fallows na revista The Atlantic. “Trump, em contraste, não participou nem mesmo de um único debate cara-a-cara ao vivo.”
Fallows é um veterano de debates e tem escrito sobre o assunto há décadas. Participou do treinamento de Carter em 1976 – mas não dos embates lastimáveis de 1980, em que Carter foi destroçado por Ronald Reagan, treinado pelo mesmo consultor hoje a serviço de Trump, o ex-presidente da Fox News Roger Ailes. Em seu artigo, Fallows aponta os principais pontos que podem determinar o resultado do embate de hoje:
Simplicidade – A fala de Trump é acessível a um ginasiano. Mesmo em sua linguagem corporal e facial usa poucas expressões, de eficácia garantida. É por isso que convence mesmo que não esteja dizendo a verdade. Essa é uma deficiência de Hillary.
Ignorância – O conhecimento de Hillary sobre os temas de governo é incomparavelmente superior ao de Trump, cujas gafes se acumulam ao longo da campanha. É um ponto que, se for hábil, Hillary poderá explorar. Diante de uma afirmativa descabida, ela poderá colocá-lo contra a parede, como Frankel fez com Ford.
Dominância – Hillary e Trump são figuras opostas. O estilo de Trump é humilhar o adversário – basta ver o vídeo em que ele raspa o cabelo de um empresário rival, depois de ganhar uma aposta sobre um embate de luta-livre. Das três vezes em que ficou mal diante das câmaras nesta campanha, diz Fallows, duas foram por tentar aplicar essa tática com mulheres. Se tentar usá-la contra Hillary, ele é que pode sair machucado.
Sexo – O sucesso de Hillary dependerá de como usar sua condição feminina. Não pode transmitir uma imagem de submissa, mas também não deve parecer professoral ou ranheta. Seu maior erro seria meter-se a passar pito ou a ralhar com Trump. Sua vantagem é que, ao contrário de Trump, ela pode relaxar, sem se preocupar com o fato de ser mulher. Ele é que precisará tomar o tempo todo cuidado com isso.
O resultado dependerá que quão confortáveis Trump e Hillary estiverem em seus papeis. Ele, o “macho-alfa” que quer resgatar o orgulho do país. Ela, a mulher dedicada que tenta transmitir um olhar de esperança para o futuro. “Porque este debate não dependerá em nada das questões concretas”, disse, em podcast no New York Times, Tony Schwartz, o co-autor do best-seller criador o mito Trump, que hoje o denuncia como fraude (escrevi uma coluna sobre isso na revista Época). “Dependerá de emoção, de qual candidato nos fará sentir mais seguros, de qual nos fará sentir menos seguros. E aquele que ganhar essa disputa vence o debate – e provavelmente vence a eleição.”
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