segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Alguma coisa está fora da ordem

domtotal.com
A convicção está mais para a fé, que para o exercício do zelo pela lei.
"O mundo está ao contrário e ninguém reparou".

Por Felipe Magalhães Francisco*

A constatação do título foi feita pela recém-empossada presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Cármen Lúcia. Seu discurso na posse recorreu ao olhar sensível de muitos poetas, entre os quais Caetano Veloso, compositor da música-constatação de que alguma coisa está fora da ordem. Do meu, possivelmente questionável, ponto de vista, acredito que a ministra esteja correta na constatação. Não saberia dizer, a menos que ela o diga, se concordamos quanto a quais coisas estão fora da ordem.

Nesse caso, data venia se discordamos, senhora presidente, mas ouso apontar uma reflexão sobre o papel do judiciário na atual conjuntura do país. É certo que os poderes institucionais da República estão em crise. No Executivo, um (des)governo que não tem o respaldo das urnas, com um projeto econômico-político (sim, nessa ordem!) que não vence as eleições presidenciais há mais de uma década. No Legislativo, um Congresso vergonhoso, conservador no pior dos sentidos e a serviço de interesses que não condizem com a verdadeira Política. No Judiciário, a irrupção de uma juristocracia que aliena direitos fundamentais e que serve a um projeto justiceiro-midiático.

Chega a ser irônico que a presidente do STF afirme que algo esteja fora da ordem, quando assentada ao lado de Carlos Magno, digo, de Michel Temer, que não aceita ser chamado de golpista, sem o deixar de ser. Muitos se revoltaram com o fato de que o ex-presidente Lula tenha sido convidado para a cerimônia de posse. Não porque seja investigado e denunciado, mas porque já o condenaram de antemão, sendo culpado ou não. No entanto, essas mesmas pessoas não se revoltam com o fato de que um ministro como Gilmar Mendes ocupe cadeira cativa na maior corte do país.

Alguma coisa, de fato, está fora de ordem, quando sem provas, mas com convicção, apenas, "condena-se" alguém. Há uma base religiosa no comportamento dos que estão ligados ao judiciário. A convicção está mais para a fé, que para o exercício do zelo pela lei, como revela a postura do procurador Deltan Dallagnol. Esse é apenas um sinal de que o poder judiciário necessita, com a mesma urgência dos outros poderes, de uma reforma estrutural. Quem não se lembra do caso da agente de trânsito, Luciana Silva Tamburini, condenada a indenizar um juiz, depois de recordá-lo de que não era um deus, só por ser juiz? A base religiosa-idolátrica que permeia o poder judiciário fez com que se criasse uma casta no país completamente desvirtuada de sua natureza de garantidora da lei. Como dizia outro poeta-compositor: "o mundo está ao contrário e ninguém reparou".

Que a quebra de protocolo da presidente do STF, ao cumprimentar em primeiro lugar o Povo Brasileiro, aponte para novos ares do exercício do poder judiciário. Afinal, nosso sofrido povo não merece continuar sendo ultrajado, tal como a viúva da parábola contada por Jesus (cf. Lc 18,1-8). Um juiz que não temia a Deus e que não respeitava pessoa alguma, que se recusava a fazer justiça na vida da empobrecida viúva. Só o fez depois de muita insistência, mas não pelo fato de ser interpelado a cumprir seu papel de garantidor da justiça, mas porque não queria mais ser importunado pela insistência da mulher. Que chegue o dia em que não precisemos mais insistir, mas que o direito e a justiça sejam realidade na vida das pessoas, sobretudo na dos empobrecidos e empobrecidas. E que nada mais esteja fora da ordem!

*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras.

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