quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Jornada nas escadas

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Num mundo sem escassez a desigualdade não é apenas reconhecida, mas abraçada.
Porque perdemos tanto tempo tentando fazer da desigualdade uma vilã num mundo com escassez?
Porque perdemos tanto tempo tentando fazer da desigualdade uma vilã num mundo com escassez?

Por Alexandre Kawakami*

O seriado Jornada nas Estrelas já levou vários economistas a se fazerem a seguinte pergunta: como seria uma sociedade como a da série, onde a escassez não existe?

Para quem não conhece a série, ou para quem já a esqueceu, vale lembrar. O problema da escassez, ou a inevitável limitação de recursos, é resolvido por três deus ex machina: o “replicador”, uma máquina capaz de formar, a partir do nada, qualquer tipo de alimento, equipamento, medicamento ou vestimenta; um “transportador”, o qual permite que corpos e cargas possam ser transportados imediatamente de um local ao outro; e as próprias naves espaciais, capazes de viagens em velocidades muito maiores do que a da luz.

A primeira máquina soluciona o problema da escassez material. As segunda soluciona o problema da escassez de tempo e espaço. A terceira, o problema de espaço.

No mundo de Jornada nas Estrelas, não existe dinheiro. Isso faz algum sentido porque dinheiro nada mais é do que uma forma de lidar com o problema da escassez, uma vez que é a expressão do valor que damos a determinado recurso. Recursos mais caros, ou que requerem mais dinheiro, são geralmente mais difíceis de obter. O inverso vale para os mais baratos. Mas numa sociedade onde todos os recursos estão prontamente disponíveis, dinheiro deixa de ter sua função.

Nessa situação, por que as pessoas trabalhariam? É natural pensar que não o fariam. A justificativa da série é a seguinte: as pessoas se esforçariam por amor a suas profissões. Mas não são todos os que sentem essa necessidade. Mais realista seria imaginar que as forças psicológicas que nos impelem hoje, num mundo que vive com a escassez, continuariam a nos impelir num mundo sem ela.

Algumas pessoas agiriam para conseguir poder sobre outras pessoas. Algumas pessoas agiriam para expressar seus desejos de caráter hedonista. Algumas pessoas agiriam por um senso de propósito que dá sentido a suas vidas. Cada alternativa não exclui a outra e todas podem ser perfeitamente paralelas, complementares, justapostas ou mesmo conflitantes.

Fato é que os incentivos para as ações das pessoas continuariam sendo, como são agora, relevantes na medida em que são, em parte, relativas em relações às outras pessoas e, em parte, relativas ao humano e sua relação com o universo observável.

Apenas estas breves observações são suficientes para concluirmos que as pessoas não seriam iguais num mundo sem escassez. Pelo contrário, a ausência de escassez provavelmente nos separaria entre pessoas que são entediantes em sua mediocridade e magníficas em sua exclusividade. Este simples fato já introduz um outro grande incentivo para a ação das pessoas neste mundo: admiração por pessoas magníficas, e o desejo de se aproximar delas ou mesmo ultrapassá-las. O desejo de emergir da mediocridade, seja perante ao universo, seja perante às outras pessoas, talvez seja o maior elogio à virtude da desigualdade.

Tal desejo se agravaria pelo fato de que a tecnologia nos permitiria viver muito mais, senão nos aproximarmos da eternidade. E a eternidade passada no ócio, sem escassez, seria terrivelmente maçante, ainda que seja concebível que alguns sejam capazes de viver desta forma. Talvez atravessando anos e anos em maratonas do Netflix.

Talvez seja essa a maior motivação, neste mundo, para que as pessoas adquiram conhecimento, pratiquem um ofício, obtenham habilidades e cultivem ambições: ultrapassar o medíocre e deixar sua marca no quadro da história da humanidade. Mas isso só é possível num mundo onde a desigualdade não é apenas reconhecida, mas abraçada.

E assim sendo, a pergunta mais relevante que fica da filosofia de Jornada nas Estrelas é a seguinte: se a desigualdade é um fato e virtude num mundo sem escassez, porque perdemos tanto tempo tentando fazer da desigualdade uma vilã num mundo COM escassez?

Consequentemente, o problema que os defensores da igualdade social querem atacar, largamente sem saber, não é o da desigualdade, mas o da escassez profunda para alguns. E uma vez que reenquadramos a pergunta nestes termos, a discussão sobre qual política é melhor do que outra torna-se bem mais clara.

Spoilers: o problema da escassez profunda nunca foi resolvido e sempre foi aprofundado em todos os modelos de controle econômico estatal.   

*Alexandre Kawakami é professor de Direito Empresarial e membro fundador do Centro de Compliance e Transparência da Escola de Direito Dom Helder Câmara. É mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio.

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