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O McMundo é impulsionado pelo comércio expansionista.
Por Carlos Cunha*
O neologismo "McMundo", em inglês McWorld, foi criado pelo sociólogo estadunidense Benjamin Barber em 1992, no seu livro Jihad vs. McWorld. Desde então, o termo passou a ser usado como referência à globalização econômica tendo a expansão internacional da rede de fast-food McDonalds como modelo. Para Barber, o McMundo é produto de uma cultura específica, impulsionado pelo comércio expansionista promovendo intercâmbios de bens e serviços. Longe de ser uma atividade isenta de valores ou culturalmente neutra, a nova ordem mundial age agressivamente em prol da difusão de uma cultura consumista globalizada reduzindo a vida e o humano a uma mercadoria.
"Intercâmbio econômico e cultural entre diversos países, devido à informatização, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, à ação neocolonialista de empresas transnacionais e à pressão política no sentido da abdicação de medidas protecionistas", esta é uma das definições dadas ao verbete "globalização" pelo ilustre linguista Antônio Houaiss em seu dicionário da língua portuguesa. Interessante a lucidez como Houaiss joga com as palavras. De um lado, ele realça o lado claro e notório da globalização. Ela não é um fenômeno exclusivamente econômico imbuído somente em espalhar capitalismo. A globalização, como plataforma global, compartilha trabalho, conhecimento, divertimento e culturas também. Seria tolice ignorar a sua capacidade em tornar global a liberdade e a diversidade humanas. Colhemos na atualidade os benefícios da troca de elementos culturais graças ao desenvolvimento das tecno-ciências. Isso é muito bom.
O outro lado acentuado por Houaiss é o lado oculto da globalização. Aqui está a "mcdonaldização" das comunidades planetárias pulverizando as diferenças por meio de ações neocolonizadoras regidas por um capitalismo selvagem. A perversidade desse movimento reside em iniciativas neocolonialistas que visam o controle e as intervenções, do uso da terra, dos recursos naturais e serviços públicos por parte das grandes empresas transnacionais. A riqueza das culturas subalternas desaparece diante da ganância de poucos que detêm as grandes fortunas. As imposições desse sistema neocolonizador não são só econômicas, numa espécie de neoliberalismo redutor da vida e do humano a um grande mercado livre. Há também imposições políticas, sociais, do conhecimento e até religiosas.
Devemos ter cuidado em não cair no lado oculto da globalização. Não podemos ser ingênuos. É preciso guardar a mente e o coração. O apóstolo Paulo escreveu aos cristãos de Roma: "E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito" (Rm 12,2). Precisamos descolonizar a nossa mente de ideias desumanizadoras impostas. Não podemos ceder a uma lógica mental que instrumentaliza as relações humanas e a criação. Seja para um cristão ou não, a vida é um bem supremo digno de honra. Não podemos convertê-la em uma simples mercadoria de consumo. Antigamente, trabalhava-se para viver com dignidade e qualidade de vida. Hoje, nesse mundo plano, o sujeito vive para trabalhar buscando atingir metas de lucro e acúmulos de bens.
Além de guardar a mente, devemos guardar o coração. Numa exortação paternal, o provérbio afirma: "Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração porque dele procedem as fontes da vida" (Pv 4,23). O mundo de hoje exige vigilância. Corremos o risco de “ganhar o mundo" e perder a vida. Não há problema algum em trabalhar, adquirir bens e serviços. Isso tudo é legítimo. A ilegitimidade está na obsessão pelo trabalho e aquisição desenfreada de bens. O mundo globalizado tem uma tendência a vender marcas globais e valores de consumo. É preciso ter cautela e discernimento para não cair nesse laço e criar ídolos no coração. Alguém já disse que não se entra no reino de Deus se não sair do reino das riquezas.
O mundo globalizado exige discernimento do sujeito. Soa de bom tom a postura equilibrada do jornalista Thomas Friedman, no seu famoso livro The world is flat: a brief history os the twenty-first century (O mundo é plano: uma breve história do século XXI). Diz Friedman: "A lei de ferro da globalização é muito simples: se você pensar que tudo isso é bom, ou que tudo isso é ruim, você não entendeu. A globalização tem nela embutida tendências de dar e tirar poder, de homogeneizar e particularizar, de democratizar e de tomar medidas autoritárias". Pois bem, cabe a nós escolhermos entre o lado claro ou oculto da globalização.
Se a globalização possibilita também a evidência das particularidades, que o momento seja oportuno para a descoberta de uma lógica de vida saudável. Lembremos o surgimento do Reino de Deus proposto por Jesus. Ele surge de forma tímida, particular e atinge grandes proporções. O reinado de Deus não é novidade exclusiva da mensagem de Jesus. A categoria "Reino de Deus" era símbolo bem conhecido entre os israelitas. Havia no meio deles a expectativa da irrupção de um reino teocrático e independente, isto é, um reino dirigido por Javé e desvinculado dos povos pagãos. A novidade de Jesus está na ressignificação de seu conteúdo. Jesus recria, a partir da própria experiência de vida, nova concepção de "Reino" e dá-lhe outro horizonte de expectativa.
A expressão "Reino de Deus" transmite a ideia de mudança total e estrutural dos fundamentos desse mundo, introduzida por Deus. Não significa simplesmente algo interior ou espiritual. Do mesmo modo, não se trata de realidade que vem de cima ou se deva esperar fora deste mundo, depois da morte. Em sentido concreto, o Reino aponta para a liquidação da alienação com todas as consequências na vida de mulheres e homens, na sociedade e no cosmos, a transfiguração deste mundo compreendido a partir do projeto salvífico de Deus.
Aqueles que se associam ao projeto da implantação do governo divino não podem permanecer à mercê de um sistema que aliena e oprime o ser humano. Jesus introduziu novo modelo de comportamento social. É preciso conversão. A mudança de vida em prol do bem de toda criação é característica da(o) cidadã(ão) do Reino de Deus. Jesus anunciou o Reino do Pai: a transformação radical deste mundo, segundo o projeto libertador de Deus. Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes do Reino. O cristão, como discípulo de Cristo, não tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa esperança. A fé desmascara, à luz da palavra de Deus, o discurso ideológico dos dominadores e revela a opção de Jesus pelos marginalizados. Jesus assume a identificação com oprimidos, e neles quer ser amado e servido.
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*Carlos Cunha é doutor em Teologia, professor e pesquisador pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
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