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- Por que o senhor está de braços abertos?
Não vê que eu sou uma casuarina e nas pontas dos meus galhos tem dois ninhos de sabiá?
Por Luís Giffoni*
Conheci muitos loucos ao longo da vida. A maioria era gente finíssima, de dar inveja. Loucos assumem suas idiossincrasias extremas, vivem as fantasias sem amarras, viajam em rabo de cometa. Enquanto nos esmeramos no comportamento que cerceia, eles curtem a liberdade. São a vontade da hora, a personalidade do minuto, a mania do momento. Claro, isso tem um custo. Alto, às vezes. Menor, contudo, que décadas dentro de padrões mais sufocantes que camisa de força.
Em minha cidade, Baependi, no Sul de Minas, os loucos voejavam pelas ruas quais artistas de circo, ao mesmo tempo feras e trapezistas. Gozavam de respeito. O Trovão, por exemplo, jurava ser ex-pracinha que tinha perdido um dedo na Itália. Suas aventuras iam de Calicute a Monróvia, passando pelos tormentos de Monte Castelo. Se as inventava, não sei, mas eu as ouvia com atenção. Uma benfeitora lhe dava o almoço que ele britanicamente pegava ao meio-dia. Uma tarde despachou a refeição. A benfeitora estranhou:
– A comida não está do seu agrado, Trovão?
– Não, senhora, a comida está boa, mas é que eu não gosto de compromisso. Esse negócio de vir aqui todos os dias ao meio-dia me compromete. No dia em que eu quiser o prato, eu venho e pego. Não me espere mais.
Já o Meia-noite distribuía loucura com dignidade, enquanto mendigava tostões no sábado à porta das casas. Uma vez exigiu esmola dupla.
– Por que esmola dupla, Meia-noite? – perguntou a senhora que o atendia.
– Porque no sábado que vem eu não venho. Assim, hoje quero adiantado.
O Meia-noite inventou a esmola pré-datada.
Meu louco inspirador possuía vasta cultura, porém de vez em quando liberava as amarras e alardeava nas ruas sua portentosa coleção de palavrões. Que coleção. Em seguida, consciente de seu problema, dirigia-se à cadeia, trancava-se numa cela e lá ficava até passar o surto de impropérios.
Visitei-o numa dessas ocasiões de único preso do município. Ele estava com os braços abertos atrás das grades, as palmas das mãos voltadas para cima. Não resisti à curiosidade:
– Por que o senhor está de braços abertos?
Não respondeu. Insisti:
– Por que o senhor está de braços abertos?
– Fica quieto, garoto. Não vê que eu sou uma casuarina e nas pontas dos meus galhos tem dois ninhos de sabiá? Fica quieto, senão assusta os filhotes.
Essa lição me impressionou, já candidato a escritor. Descobri que os escritores somos casuarinas que têm nas mãos ninhos de sabiá, canários, tizius, o que a imaginação quiser. Com a palavra, soltamos nossos pássaros na cabeça alheia. Há quem nos escute com prazer. Mas há quem nos enxergue apenas uma casuarina cheia de ninhos. Escrever é viver essa deliciosa duplicidade vegetal e humana. Uma loucura.
*Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações como do Prêmio Jabuti de Romance, da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte.
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