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Os direitos econômicos e sociais nasceram das lutas dos trabalhadores
A credibilidade do sistema político foi liquidada e o Judiciário está desacreditado.
Por Élio Gasda*
No dia 19 de maio passado, em conversa com membros da Presidência do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), Papa Francisco expressou sua preocupação com a situação da América Latina. Na ocasião falou de golpe de Estado branco, ou seja, a derrubada de um governo através de manobras jurídicas, parlamentares e constitucionais de legitimidade duvidosa.
Servir-se de falso processo jurídico para assaltar o poder é mandar às favas a legalidade, a democracia e o respeito pela verdade. O que esperar quando as instituições estão falidas e as regras são quebradas justamente por aqueles que deveriam zelar por elas? O mundo já sabe. O Brasil tem sua Alice em seu julgamento de cartas marcadas: “Quanta asneira! - disse Alice bem alto. Onde já se viu dar a setença antes de julgar se o acusado é culpado ou não? ... Vocês não passam de um pacote de cartas de baralho” (Lewis Carrol: Alice no país das maravilhas). Alice desmontou a farsa.
Em nome da cumplicidade promíscua com o dinheiro, as instituições funcionam como instrumentos de defesa dos privilegiados. Difícil imaginar algum futuro bom para um povo humilhado por sua própria elite. Transformaram um vice corrupto em presidente pela mágica de uma conspiração golpista e deram o nome de impeachment. A direita mais reacionária do planeta provou que é capaz de cometer qualquer vilania para não ceder um milímetro de seus privilégios. Com a conivência do Judiciário. “O homem que se vende recebe sempre mais do que vale” (Barão de Itararé).
A democracia revelou-se uma farsa. Estamos muito longe de ser uma república federativa democrática. Imaginar que essa elite cleptocrata irá solucionar uma crise que ela mesma criou, inconformada com os resultados das urnas em 2014, é de uma ingenuidade revoltante. São elas as donas das instituições brasileiras. Apropriaram-se do Estado para utilizá-lo como instrumento das práticas concentradoras de riqueza. Privatizaram a política para controlar os instrumentos da democracia, tais como eleições, Parlamento e Judiciário.
Quando alguma estratégia não funciona, atropela-se o Estado de Direito. Não se trata de uma patologia ou de um desvio do sistema, mas faz parte da natureza dos donos do dinheiro. Sua prepotência está associada ao propósito de manter os pobres em sua condição de inferioridade. O desamparo e a miséria dos oprimidos são considerados fenômenos naturais por essa gente. Quando grupos privados se apoderam diretamente do Estado a exceção se torna regra a legitimar a implantação do reino dos negócios escusos. Oportunistas, corrompem a política sem nehum pudor. Isso funciona perfeitamente em sociedades semianalfabetas. A farsa orquestrada por essa gente movida a dinheiro pôs o Brasil em marcha a ré acelerada rumo a um abismo de proporções inéditas.
Karl Mannheim dizia que “não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Tratemos do poder econômico e administrativo, assim como o poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tal como a imprensa”. Devemos temer menos os governos, que podemos substituir, e muito mais os poderes privados que exercem influência no interior da sociedade. O poder econômico infiltrado no Estado (sottogoverno, Norberto Bobbio) levou o Secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner, a questionar a conspiração do impeachment da presidenta: “Há necessidade de um pouco de cautela, ver se por trás do impeachment não há interesses político-partidários. Esse elemento é importante. É de se perguntar se essas pessoas, inclusive políticos que estão insistindo nisso, têm real interesse no País”.
Os direitos econômicos e sociais nasceram das lutas dos trabalhadores. O golpe de Estado branco é contra eles. A imensa maioria da população arcará com o ônus de mais uma conspiração da cleptocracia industrial-financeira-midiática-jurídica que “insultou a democracia” (The Guardian) e envergonhou o Brasil perante o mundo. La commedia è finita (Luis Fernando Veríssimo). O Brasil não mais será o mesmo. A credibilidade do sistema político foi liquidada e o Judiciário está desacreditado. Mas no dia em que transbordou a valentia da Alice das Gerais torturada pelo outro golpe, deu-se o início do julgamento dos conspiradores de hoje perante a História.
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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