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Todas essas mudanças, valeram realmente a pena?
A tecnologia apresentava, a cada dia, um mundo de novas opções.
Por Evaldo D´Assumpção*
Há tempos escrevi um texto sobre as mudanças que o mundo moderno enfrenta, abordando especialmente os relacionamentos familiares. Nos últimos dias tenho refletido sobre a influência da tecnologia sobre a qualidade de vida dos humanos. O que não deixa de ter forte ligação com o artigo anterior.
Em 1936, o engenheiro alemão Konrad Zuse construiu o primeiro computador eletromecânico, contudo o governo do seu país não se interessou por ele, empenhado que estava nos esforços para a grande guerra. Contudo, a Marinha, e em seguida o Exército americano desenvolveram secretamente novos aparelhos que foram apresentados ao mundo no final da segunda grande guerra.
A partir daí, e exatamente pela utilização dos computadores, que aceleraram o desenvolvimento científico numa extensão e velocidade incríveis e autoalimentadas, foram surgindo novas máquinas e novas tecnologias, numa espiral ascendente cada vez mais rápida, cada vez mais refinada. O mundo da segunda metade do século XX viu nascer, em sua plenitude, a Era Tecnológica. Tanto nos laboratórios como nos lares, a tecnologia apresentava, a cada dia, um mundo de novas opções somente imaginadas nos livros de ficção de Júlio Verne e outros visionários. Das viagens estratosféricas aos utensílios domésticos e aparelhos de comunicação, multiplicavam-se as transformações de equipamentos, ao mesmo tempo em que surgia e ampliava-se o conceito e a necessidade da descartabilidade. Veículos e aparelhos em geral, que eram construídos para durar décadas, passaram a durar somente anos, e cada vez menos, obrigando empresas e pessoas a substituí-los com pouco tempo de uso. E, para estimular estas trocas, permitindo às fábricas produzirem cada vez mais, passou-se a criar novos modelos, com mudanças quase sempre somente estéticas e desnecessárias para a finalidade precípua de tais equipamentos. Com isso aumentaram os lucros das indústrias e de seus proprietários, ao mesmo tempo em que crescia o endividamento do povo e o acúmulo de sucatas, poluindo o planeta com os frutos da obsolescência.
Nesse instante acabou a Era Tecnológica, iniciando-se a Era da Tecnocracia. Ou seja, a ditadura da ciência descompromissada, no seu íntimo, com a verdadeira qualidade de vida dos humanos e de todo o planeta Terra. Com tantas mudanças, nasce a Modernidade Líquida, descrita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 - ... ) , tempo de volatilidade, incerteza e insegurança. Tempo em que os valores morais sólidos, de anos passados se liquefazem, dando lugar à lógica do agora, do consumismo, do hedonismo, da artificialidade. Tempo de moralidade e ética fugazes.
Diante desse quadro verdadeiramente dramático para quem viveu as décadas de 50 a 80, com todas as suas deficiências, se comparada com o século XXI, fica no ar uma pergunta: todas essas mudanças, valeram realmente a pena? Certamente os usufrutuários e os aproveitadores dessas mudanças, criticarão essas colocações, quem sabe até considerando-as senis e ultrapassadas. Contudo, um simples olhar isento e acurado da sociedade atual comprovará que algo deteriorou-se – liquefez, talvez diria Bauman – na qualidade real da vida que vivemos nos dias atuais. Basta observar os níveis de poluição atmosférica e planetária denunciados pelas organizações internacionais. Basta comparar as estatísticas de criminalidade, tanto quantitativa quanto qualitativa, que aterrorizam os cidadãos, hoje mais enjaulados do que os criminosos, que circulam livremente pelas ruas. E aqui incluo autoridades executivas, legislativas e judiciais, especialmente em nosso país, tanto quanto os já aboletados em cargos brasilienses, quanto os que já se mobilizam para tentar uma sinecura na edilidade e nas prefeituras, através do voto inconsequente nas eleições de outubro próximo.
Basta sentar-se diante de uma TV no recôndito do lar, e questionar, vendo as programações de praticamente todos os canais, se é possível reunir-se a família para assistir filmes, novelas ou qualquer outro programa, sem graves restrições éticas e morais. Basta entrar em lugares públicos de lazer, e verificar se existe verdadeiro encontro de pessoas, ou se elas ali estão apenas para mais algumas horas de redes sociais, nos modernos e miniaturizados computadores portáteis. Basta caminhar atentamente pelas ruas, a qualquer hora, para encontrar trapos humanos recorrendo à retraída caridade dos passantes, vítimas que são do desemprego, da falta de educação e saúde públicas, e especialmente das drogas que a eles servem como substitutos do alimento, da vestimenta, dos lares que pouco ou nada conheceram.
Quantas santas Terezas de Calcutá ainda terão de surgir para acolher essa enorme multidão de pobres, migrantes, viciados, que a Tecnocracia ignora, pois não se prestam a insaciáveis consumidores das geringonças que cria, gerando benefícios para uma minoria privilegiada, e danos irreparáveis à grande leva de párias de uma sociedade liquidamente hipócrita?
*Evaldo D´Assumpção é médico e escritor
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