terça-feira, 25 de outubro de 2016

A Constituição e a prisão antes do fim dos recursos

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Não se pode ter a sensação de impunidade, mas violar direitos humanos é incabível.
A presunção de inocência se transformou em presunção de culpa após o segundo julgamento.
A presunção de inocência se transformou em presunção de culpa após o segundo julgamento.

Por Renato Campos Andrade*

Enquanto o país continua a viver uma turbulência política, especialmente em virtude dos inúmeros escândalos de corrupção, especial atenção é deslocada para o Judiciário, visto que vários “figurões” da República estão sendo presos. Nesse cenário, ganha enorme repercussão a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à possibilidade dos condenados em primeira e segunda instância iniciarem o cumprimento da pena mesmo antes de esgotado o último recurso. O princípio da inocência, que só terminaria no trânsito em julgado da última decisão, isto é, após não ser mais possível interposição de recurso por parte do acusado, foi “antecipado” para a decisão dos tribunais, em segunda instância.

Em uma decisão “apertada”, seis ministros votaram a favor da tese de possibilidade de prisão após o julgamento do recurso em segunda instância e, cinco, contrários. O placar já dá ideia da polêmica e do tamanho do duelo de teses. O ministro Dias Toffoli, que era favorável à tese em fevereiro deste ano, mudou seu e se aliou aos ministros que defenderam ferozmente o princípio da inocência. Foi necessário o voto de desempate da presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia.

Os ministros Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia votaram a favor da execução antecipada da pena, enquanto os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Rosa Weber e Celso de Mello foram contrários.

Estima-se que, com a antecipação das prisões, milhares de novos presos entrarão em um sistema penitenciário já bastante abarrotado. Na prática, se uma pessoa que supostamente cometeu um crime for condenada pelo juiz e perder o recurso, antes mesmo das instâncias superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) julgarem seu últimos apelos, ela já será presa e terá início o cumprimento da pena. Mas e se a decisão for revertida? Isso significaria que ela não deveria ter passado um só dia na cadeia e mesmo assim ficou anos lá?

Em contrapartida, após ser julgado por um juiz, ter sido condenada, recorrido, ter sido novamente considerada culpada, desta vez por três desembargadores, já não é suficiente para transformar a presunção em presunção de culpa?

É  importante analisar os pontos da decisão, de maneira a indicar suas virtudes e pontos desfavoráveis, bem como verificar o Direito Comparado, a fim de verificar como é esse tratamento em outros países.

No artigo O STF e a relativização da presunção de inocência, o advogado e pós-graduando em Direito do Trabalho, Bruno Gomes Barbosa, explica que não há princípios de observância absoluta no ordenamento jurídico pátrio. “No caso, o Supremo acertadamente conferiu maior peso à função jurisdicional penal ao relativizar a necessidade de prolongamento do processo criminal até o trânsito em julgado da sentença para que fosse preso o réu já condenado nas instâncias responsáveis pela análise probatória”.

Por sua vez, no artigo A prisão após condenação em 2ª instância, a advogada e pós-graduanda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário na Atualidade, Gleiciane Pereira, ressalta que “a pretexto da ‘necessária atividade persecutória do Estado’, a supremacia do interesse público sobre o individual não pode prosperar, tendo em vista que uma interpretação sistemática da Constituição leva-nos à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar. Logo, em caso de conflito de preceitos, deve prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão”.

Segundo ela, os recursos excessivos podem ser filtrados de forma eficiente e os advogados que cometem exageros recursais podem ser sancionados. Ela afirma que “a decisão do STF não deve prevalecer, sob pena de assumir contorno de verdadeira reprimenda antecipada, violando claramente o devido processo legal e a presunção de inocência”.

Após citar diversos dispositivos internacionais no artigo O fim da presunção de inocência até o trânsito em julgado, o advogado, vice-presidente da OAB/Subseção de Ribeirão das Neves (MG) e pós-graduando em advocacia criminal, Habib Ribeiro David frisa que é impossível se afirmar quando a culpa estará de fato comprovada e, portanto, delimitar o marco final da presunção de inocência. “Por isso, é possível em vários países a condenação após a decisão condenatória de segundo grau”.

O modelo de prisão antes do trânsito em julgado é adotado em outros países, como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina, segundo relato do ministro Teori Zavascki. No entanto, o Habib Ribeiro David indica que o texto constitucional brasileiro não dá margem para essa interpretação.

O debate é amplo e pertinente. Uma decisão de seis votos a cinco indica que há muito o que se estudar. A sociedade não pode ter a sensação de impunidade, mas violação de direitos humanos é incabível, independentemente da justificativa. Pode a presunção de inocência se transformar em presunção de culpa após o segundo julgamento e antes do último? No Brasil, após a decisão do Supremo, sim. 


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*Renato Campos Andrade é advogado, professor de Direito Civil e Processo Civil da Dom Helder Escola de Direito, mestre em Direito Ambiental e Sustentabilidade, especialista em Direito Processual e em Direito do Consumidor.

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