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O âncora seria uma espécie de comentarista, com direito a expressar opiniões.
A contundência e seriedade do questionamento de Boechat é de se tirar o chapéu.
Por Alexis Parrot*
A figura do âncora no telejornalismo brasileiro é relativamente recente. Convencionou-se dar o título de pioneiro no cargo em nossa televisão para Boris Casoy, na década de 90, quando ele esteve à frente do TJBrasil, no SBT. Nos Estados Unidos, ao contrário, o âncora é figura tradicional à frente dos telejornais e programas de entrevistas. Walter Cronkite é um dos mais influentes e memoráveis âncoras da história televisiva. Apresentou o jornal da CBS durante 19 anos e está no imaginário do povo norte americano por ter sido o mensageiro que primeiro relatou momentos marcantes da história do país (como a morte de JFK, em 63).
Mas qual seria a diferença entre âncora e apresentador nos telejornais? O apresentador seria apenas um leitor de textos - como o foi Cid Moreira, ao longo de toda a sua trajetória à frente do Jornal Nacional da Globo. Já o âncora seria também uma espécie de comentarista, com direito a expressar opiniões ou análises sobre as reportagens e entrevistas veiculadas.
A recente decisão de um juiz de Brasília em condenar a atriz e jornalista Mônica Iozzi, processada pelo ministro do STF Gilmar Mendes (o sapo cururu da nação), pode nos ajudar a entender melhor a questão, pela repercussão que obteve na imprensa.
A contenda surgiu a partir de uma publicação de Iozzi em sua conta do Instagram onde, como legenda sobre uma foto do ministro, questionava o habeas corpus concedido por ele para Roger Abdalmassih, médico especialista em reprodução humana, condenado a 278 anos de prisão por 56 estupros delatados por clientes suas. Para arrematar, a jornalista e atriz perguntava: "Cúmplice?"
O juiz que definiu a causa a favor de Mendes entendeu que Mônica Iozzi "abusa de seu direito de liberdade de expressão" (seja lá o que signifique isso - porque a liberdade de expressão enquadra-se em apenas duas situações: quando há ou quando não há) e mais: que ela estaria imputando ao ministro a cumplicidade no crime de estupro, "tornando questionável o seu caráter e imparcialidade na condição de julgador".
Parece piada. Quem nos dera que a publicação de Mônica Iozzi fosse a única coisa que tornasse questionável o caráter e a imparcialidade de Gilmar Mendes...
Sobre essa questionável decisão, não veio da televisão a crítica mais lúcida, veio do rádio - na voz de Ricardo Boechat, em seu programa na Band News FM. Tendo como mote uma das frases publicada por Iozzi na rede social ("...se um ministro do Supremo Tribunal Federal faz isso, nem sei o que esperar."), o âncora Boechat passou a dirigir-se diretamente ao ministro.
Vale a pena a transcrição de alguns trechos de sua fala:
"Ministro Gilmar Mendes, me desculpe. Eu vou colocar como minhas as declarações da Monica Iozzi... Não me parece, ministro, que o ofendo quando digo ao senhor, diante desta e de outras decisões suas, que eu não sei o que esperar do senhor... A natureza humana é tão misteriosa; quem é capaz de dizer o que se pode esperar do senhor? Por que eu sou obrigado a dizer que só posso esperar do senhor coisas bonitinhas, maravilhosas ? - Aliás, essa decisão relacionada ao Abdelmassih, nem acho a mais grave que o senhor já tomou. Do meu ponto de vista, o senhor já tomou decisões como magistrado muito mais assombrosas do que essa."
E ele continua: "Eu estou para ver juiz que tenha peito nesse país de negar a ministros do Supremo ganho de causa em ações de interesse próprio. Estou para ver nascer esse valente de toga no país... Até que ponto eu posso achar que essa decisão é resultado do temor ou do corporativismo ? É um direito meu fazer essa especulação, ministro Gilmar Mendes. Como o senhor faz todo maldito dia um monte de considerações na imprensa, algumas delas eu acho acachapantemente ridículas, malucas, é um direito meu. Desde quando o senhor pode achar que eu não posso dizer do senhor mesmo, diante de decisões suas, que eu nem sei o que esperar do senhor ?... Quantas declarações que eu considero absolutamente irresponsáveis eu sou capaz de apontar no Gilmar Mendes, valendo-me do meu direito de julgar essas opiniões?"
"Isso é uma piada, uma brincadeira, que o ministro da mais alta corte do país se exponha ao ridículo de processar uma jornalista por um delito de opinião (ainda que não tenha sido, na minha opinião; não teve delito nenhum)... Vou repetir a frase dela: 'Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a Roger Abdelmassih depois de sua condenação a 278 anos de prisão por 58 estupros. Se um ministro do Supremo Tribunal Federal faz isso, nem sei o que esperar.' Eu também não sei, ô Gilmar. Vai me processar também ?"
A contundência e seriedade do questionamento de Boechat é de se tirar o chapéu. Lembra da ocasião em que ele criticou duramente o pastor Silas Malafaia, por detrás da bancada do telejornal da Band, onde também é o âncora.
Em outros veículos, a notícia foi apenas registrada ou nem dada, em alguns casos. Porque apresentadores não se tornam âncoras apenas por ter um crachá pendurado no pescoço. Por exemplo: Boris Casoy, agora na Rede TV!, de pioneiro na função, já virou folclore (o bordão no lugar da opinião); e Willian Bonner: muito mais um porta-voz dos interesses da família Marinho - mesmo no momento em que está no ar, à frente do Jornal Nacional - do que âncora (ou mesmo jornalista).
(Cá entre nós: para ser âncora, antes de mais nada, há que se ter coragem.)
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.
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