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A queda do céu traz pela 1ª vez relato escrito em primeira pessoa de um xamã ianomami.
Índio da tribo ianomami.
Por Pablo Pires Fernandes*
Outro dia, um amigo marcou um encontro para me devolver uns livros emprestados. Além da qualidade especial das pessoas que devolvem livros, ele também é pessoa culta e de aguçada sensibilidade. Gostou de Suicídios exemplares, do Enrique Vila-Matas, mas concordamos com a irregularidade dos contos, uns brilhantes e outros bem mornos. Discordamos sobre Os detetives selvagens, do Roberto Bolaño. A obra não o tocou tanto assim. A mim, quando a li, há uns cinco anos, me encantou muitíssimo. As 624 páginas do autor chileno me causaram praticamente uma revolução literária.
O terceiro livro devolvido mereceu especial distinção e rendeu boas considerações. “Esse aqui, realmente, fez diferença”, comentou meu amigo. Não era para menos, pois se tratava de A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. “É um acontecimento científico incontestável”, escreve o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no prefácio da obra.
A afirmação se justifica, creio. Para quem não é familiarizado com a antropologia, sua evolução teórica ou o fato de que a cada dia sua relevância se torna mais vasta, é o caso de certas explicações.
Os povos originários das Américas (para restringir ao nosso caso) nunca foram ouvidos, considerados ou respeitados. A história, mesmo a oficial, é composta de relatos que evidenciam um massacre, físico, cultural e social, sempre sob determinação política com claro objetivo excludente.
Davi Kopenawa é um xamã ianomâmi e um dos mais importantes líderes indígenas do mundo. Bruce Albert é antropólogo francês e pesquisa o povo ianomâmi há 40 anos. O livro é fruto desse encontro. Levou mais de 20 anos para ser concluído. O europeu escutou o índio até que a visão de mundo e a cosmologia ianomâmi fossem passíveis de constituir um registro autônomo.
A antropologia ameríndia se dedicou a estudar e compreender a lógica social, cultural, política e religiosa de vários dessas nações. Apesar do esforço e de conquistas e méritos fundamentais dessa investida científica, a visão sobre estes povos era orientada pelo olhar do estranho, do outro que não pertence àquele lugar nem àquele povo. E, claro, esse olhar era condicionado por modelos ocidentais, valores ocidentais e uma perspectiva já constituída a priori.
A queda do céu é paradigmático porque dá voz ao índio. O discurso não é mediado. O coautor europeu apenas registra – com um cuidado e dedicação nobres – o ponto de vista de um xamã ianomâmi. O relato traz uma visão de mundo praticamente desconhecida. E realmente é capaz de torcer a gasta lógica ocidental. É reveladora e ilumina.
(a continuar)
*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.
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