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As conjunções adversativas não podem ser desprezadas.
Patrulhas indóceis iniciaram verdadeiras cruzadas moralistas contra o uso do 'mas'.
Se não me falha a memória, parece que o curioso fenômeno tupiniquim da repressão ao “mas” teve origem após os atentados ao jornal Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. Como vocês se recordam, foi uma gigantesca mobilização internacional. Todos se pintaram com as cores francesas no Facebook; a justa indignação pela violência dos terroristas ganhou editoriais, cartas ao leitor, postagens infindáveis na internet. A frase “Je Suis Charlie” se espalhou pelo mundo em camisetas, banners, faixas, pichações, outdoors.
A solidariedade parecia unânime. Todos eram Charlie, absolutamente, sem maiores discussões. Lembro-me que foi nesta época que ouvi uma das maiores asneiras emitidas pelas cordas vocais de um ser humano - eternizada numa entrevista à Folha de São Paulo. Certo humorista, que atualmente posa de guru para deslumbre da meninada incauta, comentou assim o episódio: “Sou totalmente a favor dos humoristas do Charlie Hebdo”. Ora: até aí tudo bem, ele expunha seu ponto de vista com a liberdade a que tinha direito. Poderia ter parado neste ponto, mas seus neurônios arrogantes e vaidosos proferiram este pedregulho: “Não sou obrigado a respeitar o sagrado dos outros.”
Ora, como não? Que grandessíssimo panaca! Tive ganas de enviar uma mensagem ao referido perguntando-lhe sobre algumas coisas sagradas de seu próprio círculo familiar e social – que abstenho-me aqui de citar – e como ele reagiria caso estes seus sagrados fossem desrespeitados por um bandido qualquer.
Após a primeira onda sufocante de solidariedade às vítimas do Charlie, percebi que pequenas e tímidas reações começaram a pipocar nas redes. Nasciam da ponderação, do pensando melhor, da previsível ressaca que veio depois. Frases assim: “Achei uma barbaridade, mas acho que os humoristas exageraram, pegaram muito pesado.” Ou: “Sou a favor da liberdade de imprensa, mas por que foram mexer com os fundamentalistas? Burrice! Só podia dar nisso.”
Foi o bastante: imediatamente explodiu a reação histérica. Patrulhas indóceis iniciaram verdadeiras cruzadas moralistas contra o uso do “mas”. Era proibido refletir e enxergar o outro lado da história. Só valia metade, um único ponto de vista; era a ditadura da visão fragmentada abafando qualquer reflexão que saísse da caixinha limitada de suas cabeças. Ai de quem usasse o “mas”! Era prontamente pendurado em praça pública virtual com uma placa atada ao pescoço: “Traidor!”
A vida – dura – me ensinou a ser um defensor ardoroso do “mas”, do “porém, do “entretanto”, do “contudo” e do “todavia”. Estas conjunções adversativas não podem ser desprezadas na mente dos que procuram a verdade e não a negociam por bugigangas da moda. Elas trazem a polêmica, o vento refrescante do contraditório, a visão oposta, o ponto de vista do outro.
Circula na internet uma série de filmes muito divertidos. Um cara pegou uma Go-Pro e saiu entrevistando aqueles jovens que carregam bandeiras com a mão esquerda revolucionária e cobram as mesadas dos pais com a mão direita capitalista. Ele faz perguntas inteligentes, abordando questões nacionais – a PEC 241, a Previdência, os impostos, os direitos humanos, a corrupção e outras. As respostas são previsíveis: infelizmente, não passam de meras repetições do que ouviram aqui e ali. O cara da câmera, então, solta o contradito. Muito à vontade, bem informado e articulado, ele aprofunda a discussão e levanta o “mas”, questionando a resposta – quase sempre rasteira – do garoto ou garota atrás das trincheiras. É um desastre: a meninada monta uma roda hostil, bufa de ódio e só falta partir para as chamadas vias de fato. Uma mocinha sentiu-se “intimidada” e “constrangida” – porque, na verdade, não sabia de nada daquilo que dizia defender. Invariavelmente, voam palavras de ordem; sobretudo aquela mais famosa hoje, de uso amplo, geral e irrestrito:
- Fascista! Fascista!
Portanto, leitores, coragem. Quando discutirem temas da conjuntura nacional nas mesas de bar ou no seio de massas enfurecidas, usem seus “mas” com serenidade e firmeza – mesmo correndo o risco de serem pendurados pelos pés como Benito Mussolini – este sim, um fascista dos piores.
Repito: não abro mão dos meus “mas”. Acordo, leio notícias, almoço, janto e vejo o último jornal da noite com eles assentadinhos no sofá, do meu lado. Estão sempre alertas, de plantão na minha cabeça, prontos para agirem. São eles meus filtros contra a massificação, as ondas ideológicas sazonais, os modismos, a aceitação cúmplice de certos horrores de nosso tempo – como se fossem coisas normais.
Mas... Isto é apenas meu ponto de vista. Tragam seus “mas”, também. Sejam bem-vindos.
* Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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