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É preciso ser o mensageiro da grande novidade no meio das velhas notícias.
Para escrever sem qualquer pudor é preciso estar sempre com aquele espírito de aula inaugural.
Por Ricardo Soares*
Para escrever é preciso que realmente a gente não saiba das coisas. Das animadas e inanimadas. Das arterioscleroses poéticas e dos papéis de fábrica. Dos panfletos e dos óculos de grau. Dos conceitos de bom e mau gosto, de bem e mal estar. Dos guardanapos sujos de molho de macarrão, dos dedos imundos de gordura de frango, de camisetas com estampas duvidosas.
Para escrever sem qualquer pudor é preciso estar sempre com aquele espírito de aula inaugural, de embrião diante de um admirável mundo velho, de um pescador diante do milagre da multiplicação das corvinas. Tudo começou na hora de conceber, parir, estampar a primeira palavra. Pra escrever é preciso ser e estar assim.
Para escrever sem qualquer pudor é preciso ter percepção de primeira missa em território inóspito, primeira pegada na superfície da lua, primeiro e derradeiro aceno a quem parte para sempre, primeira queda de uma enorme corredeira, primeira escalada ao Everest, primeiro declive com óleo na pista.
Não escrever assim não é escrever mais. E nem menos. É ensaiar agradar o leitor, nunca se aventurar nos meandros de si mesmo, na inocência de estar criando a "grande novidade". Não escrever assim é perder a liberdade infantil, é ter uma velha sensação de cobrança com as palavras. O que ela me dá, o que dou a ela quando o que está em jogo é só a doação, a carne de minha carne, o sangue de meu sangue, o centro do coração do meu coração.
Para escrever é preciso que não se tema a tela ou o papel em branco, que não se frite as mazelas dentro de um parágrafo, que não se conceba uma vingança em formato de capítulo, que não se esquarteje emoção alguma em nome da razão. Escrever não é uma emoção concreta, um cimento divino ou pagão, um brasão de nobreza decadente.
Para se escrever é preciso que realmente a gente não saiba das coisas. Que a gente rompa todo o dia a casca de um ovo novo e enxergue a luz como a primeira luz, as trevas como as primeiras trevas, os ventos como as primeiras tempestades e os recomeços como recomeços e não voltas em torno de nós mesmos.
Para se escrever é preciso cortar, cerzir, bordar, contrabalançar. É preciso nervos e metafísica, filosofia e doces de leite, consciências se desentupindo e inconscientes boiando nas águas das lembranças remotas.
Para se escrever é preciso dar vazão, ir além do escorregar dos dedos, é preciso paciência, resignação, cheiro de incenso, quiçá mirra e meninos no presépio. É preciso manter e empalar as lembranças, ferver e fermentar recordações que nem tivemos, reinventar passados e imaginar futuros.
Quanto mais eu sei das coisas, mais sei que nada sei. E assim terá que ser se eu quiser continuar a escrever. É preciso não saber de nada querendo saber de tudo, é preciso ser o mensageiro da grande novidade no meio das velhas notícias. É preciso crer que antes de mais nada haviam os verbos. Mas que nunca soubemos conjuga-los de verdade.
*Ricardo Soares é escritor . Escreve às segundas e quintas no DOM TOTAL.
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