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Há acesso à informação, mas falta instrumentos de interpretação.
"Pai contra mãe" discute temas atuais a partir de obra de Machado de Assis.
Por Gilmar Pereira
Uma pessoa falava com outra no ônibus: "O lugar era sinistro! Por isso ele gostava de lá. Batia ponto. Só que ele cansou e parou".
Uma interpretação poderia considerar que a conversa se tratava de alguém com gosto por magia negra ou algo parecido. Era alguém que frequentava algum lugar sinistro, onde batia ponto. Nesse caso, ponto seria lido como algo parecido como os cantos rituais de religiões de matriz africana, também chamados “pontos”. Daí, tal pessoa deveria ser alguém que tocava hinos rituais em lugar sombrio, onde sentia prazer, até que se cansou dessa vida no mal e se converteu. Ou então, pior! Sua busca espiritual, que o levou ao culto do mal, não resultou em nada e, cansado, tirou a própria vida, parou com ela.
Ora, tal interpretação é possível, caso não se considere alguns elementos. Estamos falando de uma conversa entre pessoas por volta dos seus 30 anos. Embora hoje não seja tão costumeiro chamar algo impactante e bom de “sinistro”, já o foi e jovens adultos podem resgatar gírias de quando eram mais novos. Ou seja, como o lugar era muito bom e por gostar de lá, a pessoa de quem se falava o frequentava assiduamente. A assiduidade é atestada pela expressão “bater ponto”, que faz referência aos antigos aparelhos que registravam a presença de um funcionário em seu emprego. O trabalhador introduzia um cartão de papel em uma máquina que iria perfura-lo, batendo um ponto, que atestaria sua presença. A expressão passou a designar frequência constante. Justamente por tanto ir ao mesmo lugar, a pessoa da conversa se cansou e cessou suas idas. Só isso.
O que aprendemos? Para se interpretar um texto, há de se considerar os destinatários. Era uma conversa entre dois amigos, que compartilhavam uma série de outros códigos comuns um ao outro. Um pessoa que tomar esse trecho de conversa daqui a 50 anos, não terá a referência de que “sinistro” pode ser algo bom e que “bater ponto” é ser frequente. É como a expressão “caiu a ficha”, numa era que nem telefone público é usado mais, ou “rebobina, não entendi nada do que você disse”, numa época em que se assiste vídeos por streaming. Assim temos não só destinatários, mas os contextos social e literário, já que a conversa é coloquial e, nesse âmbito as expressões não carecem de tanto rigor em obter clareza e distinção, precisando ser lida em paralelo à cultura dos falantes e no todo da conversa.
Porque estou falando disso? Muita gente tem usado a bíblia para justificar atrocidades. Recentemente, em uma conversa, atestei para alguém que seu procedimento estava errado ao argumentar que as Escrituras lhe justificavam. A pessoa se apoiava em passagens aleatórias. Disse-lhe que sua leitura desconsiderava gênero literário, contexto dos livros sagrados (o que inclui destinatários, momento histórico etc.), contexto literário (o texto no conjunto dos outros textos sagrados), crítica textual, sentido original dos termos, etc. Afirmei que seu procedimento é indevido, já que deturpa o significado da Escritura. Sua resposta foi de que essa era “a minha visão”, o que objetei ser a regra básica de exegese e hermenêutica, não apenas o que penso. Bem, a tréplica foi de que “Não é por que um filósofo ou sociólogo afirma ou sugere uma interpretação que ela será tida como absoluta” e que nossas opiniões continuarão a ser diferentes. E continuou falando coisas do tipo “bandido bom é bandido morto”.
Apesar da facilidade de acesso à informação, grande parcela da população não tem os instrumentos fundamentais da interpretação. A diferença é que agora podem irromper em impropérios, atestando opiniões desprovidas de qualquer rigor como verdades absolutas e contar com sua propagação por redes sociais. A massa ignorante se junta e faz reverberar intolerância e idiotia. Vai-se gerando um sentimento de tensão tão grande que já se começou a extravasá-lo na rua. A agressão ao repórter da Globo, por gente que se diz de esquerda, e o afrontamento e ofensas na padaria recebidos por Patrus Ananias, por gente que se diz de direita, são exemplos recentes disso. Já se viu gente ser agredida por posição política e parece que isso tende a se tornar rotina. Até um pai matou o próprio filho e foi aclamado em redes sociais. Mas o pior não é a falta de capacidade para interpretar e ler a realidade, reconhecer erros, matizar aquilo que se defende. O pior é a falta de vontade em aprender e crescer. Vejo que há uma má fé nas pessoas que estão aproveitando este momento histórico para destilar o mal que há em si. Na era da técnica, a razão não tem sido iluminadora, como pensavam os iluministas. Apesar de toda a ciência, estamos adentrando a idade das trevas.
Pai contra mãe
Nessa época de intolerâncias, vale revisitar nossa história e como o passado ainda reverbera no presente. O espetáculo “Pai Contra Mãe” é inspirado no conto homônimo de Machado de Assis e traz para a dança discussões sobre a escravidão e suas feridas ainda abertas, racismo, machismo e violência contra a mulher. A montagem pode ser conferida entre os dias 02 e 12 de dezembro, Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH).
Sinopse do espetáculo “Pai Contra Mãe”
Sete corpos dançantes trazem ao palco os desafios de ser negro e de ser mulher em uma sociedade ainda desigual e opressora. Inspirado no conto homônimo de Machado de Assis, "Pai contra mãe" busca, por meio da linguagem das danças urbanas, tematizar e promover reflexão acerca de questões que perpassam nossa memória e nosso presente, em que as feridas da escravidão do passado ainda não se cicatrizaram e se multiplicam pela associação de antigas, porém persistentes, e novas mazelas da nossa sociedade: o racismo, a violência, o sexismo, a ânsia por poder e a vaidade humana.
Espetáculo de dança “Pai Contra Mãe”
Datas: de 2 a 5 dezembro (sexta a segunda) / 9 a 12 de dezembro (sexta a segunda)
Horário: 20h30
Local: Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB-BH - Praça da Liberdade, 450, Funcionários
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada)
Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF, graduando em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas". Escreve às sextas-feiras.
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