Fernando Paiser **NOVEMBRO/2016 -STUDIA MERTONIANA
Resumo: O que é a Contemplação? Thomas Merton, “guia espiritual”, nos conduz numa viagem à vida interior pelo caminho da simplicidade e da solitude. Revela-nos nosso próprio desejo de “saborear” esta vida interior e seu sentido. Não é um refletir filosófico, mas um caminho em meio a tantos não caminhos. A contemplação não se ensina. Merton nos mostra que ela é a graça atuante em nós quando e como quer, alimenta-nos a esperança ao mostrar que, se estamos a procurar, é porque já a encontramos.
Como Thomas Merton enxerga a contemplação?
Para Merton a contemplação é a mais alta expressão da vida intelectual e espiritual do ser humano. É a própria vida do intelecto e do espírito. Plenamente despertada, plenamente ativa, plenamente consciente de que está viva.
A contemplação é uma profunda ressonância no mais íntimo centro de nosso espírito, onde nossa própria vida perde sua voz específica e ecoa a majestade e a misericórdia daquele que é oculto mas Vivo. Ele responde a si mesmo em nós, nós próprios nos tornamos eco e resposta dele. É como se, ao criar-nos, Deus fizesse uma pergunta e, ao nos despertar para a contemplação, Ele mesmo respondesse a pergunta, de modo que o contemplativo é, ao mesmo tempo, pergunta e resposta.
A vida de contemplação implica dois planos de tomada de consciência: Primeiro, estar consciente da pergunta e, segundo, estar consciente da resposta.
Conquanto sejam esses dois planos distintos e tremendamente diferentes, são, todavia, uma tomada de consciência da mesma coisa. A pergunta é, ela mesma, a resposta. E nós mesmos somos ambas. Entretanto, ignoramos esse fato enquanto não penetramos na segunda espécie de tomada de consciência. Despertamos, não para encontrar uma resposta absolutamente distinta da pergunta, mas para compreender que a pergunta já é a própria resposta. E tudo se resume numa única tomada de consciência. Não uma proposição, mas uma experiência: “Eu Sou”.
A contemplação que falo é um dom religioso e transcendente. Não é algo que possamos atingir sozinhos pelo esforço intelectual e o aperfeiçoamento de nossas potências naturais. Não é uma espécie de auto hipnose, resultando da concentração, sobre o nosso próprio ser íntimo, espiritual. Não é fruto de nosso próprio esforço. É dom de Deus que, em sua misericórdia, completa o trabalho oculto e misterioso da criação em nós, iluminando nosso espírito e nosso coração, despertando em nós a consciência de que somos palavras proferidas em sua Única Palavra, e que o seu Espírito Criador habita em nós e nós Nele.
A contemplação é mais do que mera consideração de verdades abstratas sobre Deus. É um despertar, uma apreensão intuitiva com que o amor se certifica da intervenção criadora e dinâmica de Deus em nossa vida cotidiana.
A contemplação não encontra uma ideia sobre Deus. Ela não o confina nos limites dessa ideia, retendo-o como um prisioneiro a quem se pode sempre voltar. Pelo contrário, a contemplação, sendo pobre em conceitos e raciocínios, é que é arrebatada e transportada ao próprio domínio de Deus, seu mistério e sua liberdade.
O que a contemplação não é, segundo Thomas Merton?
A única maneira de nos libertarmos das ideias erradas sobre a contemplação é a experiência. Qual experiência? A experiência de Deus. Mas a experiência de Deus sempre é uma experiência mística. Merton foi um místico.
A contemplação não pode ser ensinada, nem mesmo é para ser explicada com clareza. Só é possível insinuá-la, sugeri-la, aponta-la. Segundo Merton, uma tentativa de definição científica da experiência contemplativa esbarra obrigatoriamente num proceder psicológico e não há nenhuma psicologia adequada da contemplação. Tentar descrever ou definir a contemplação é descrever reações e sentimentos que estão na consciência superficial que podem ser observadas pela reflexão. Mas é justamente aí o problema: Essa reflexão e essa consciência fazem parte daquele ser externo que é sublimado e posto de lado, como uma veste manchada, quando ocorre o autêntico despertar do contemplativo.
Nada pode ser mais estranho à contemplação do que o cogito, ergo sum de Descartes. “Eu penso, portanto eu sou”. Essa reflexão é feita por quem procura algum alívio numa prova de sua própria existência baseada na observação de que “pensa”. Se o seu pensamento é necessário para que possa chegar ao conceito de sua própria existência, então está, em realidade, se afastando ainda mais de seu verdadeiro ser por estar simplesmente se reduzindo a um conceito. Está tornando impossível a si mesmo experimentar o mistério de seu próprio ser. Ao mesmo tempo, porque reduz igualmente Deus ao plano de um simples conceito, torna impossível a si mesmo ter qualquer intuição da realidade divina, pois ela é inexprimível. Tenta uma aproximação do seu próprio ser como se este fora uma realidade objetiva, esforçando-se para tomar consciência de si mesmo como o faria de uma coisa estranha a si. E prova, então, que essa coisa existe. Convence-se do seguinte modo: “Eu sou, portanto, alguma coisa”. Em seguida, se convence de que Deus, o infinito, o transcendente, é, também, uma coisa, um objeto, como outros objetos finitos e limitados de nosso pensamento! Ademais o raciocínio é falho pois ele prova sua existência pelo pensamento. Mas como prova que está pensando?
A contemplação, ao contrário, é o contato pelo qual apreendemos experimentalmente a realidade como algo de subjetivo. Não atinge a realidade após um processo dedutivo e sim por meio de um despertar intuitivo em que nossa realidade, livre e pessoal, se torna plenamente consciente de suas profundezas existenciais que se abrem ao mistério de Deus.
A contemplação não é simples disposição à oração ou tendência a encontrar paz e satisfação nos ritos litúrgicos. A contemplação jamais poderá ser objeto de ambição calculada. Não é algo que planejamos obter por nossa razão prática; é a água viva do espírito de que estamos sequiosos como o cervo sequioso à procura das fontes cristalinas em pleno deserto. Não está em nós despertarmo-nos, mas é Deus que nos escolhe e nos desperta.
A contemplação não é transe ou um êxtase, nem um ouvir de certas palavras inexprimíveis ou a visão de luzes especiais. Não é o ardor emocional e a doçura que acompanha a exaltação religiosa. Não é o entusiasmo, a sensação de ser agarrado.
A contemplação tampouco é o dom da profecia, nem implica a capacidade de ler os segredos do coração humano. Essas coisas podem, às vezes, estar lado a lado com a contemplação, sem, contudo, serem essenciais a ela. Seria erro confundi-las com a contemplação.
Merton nos alerta que há muitos outros modos de se evadir do ser empírico, externo que poderiam ser interpretados como contemplação, sem o serem de fato. Por exemplo: A experiência de ser arrebatado e posto fora de si pelo entusiasmo coletivo, pela idolatria à pátria, ao partido, à raça, à seita, etc. O perigo dessas falsas místicas está no fato de seduzir e pretender satisfazer os que não mais estão conscientes de qualquer necessidade espiritual autêntica e profunda.
Para Merton não se deve procurar jamais na contemplação uma fuga ao conflito, à angústia, à dúvida. Para Merton, a cada aquisição, no sentido de uma profunda certeza, corresponde um aumento da “dúvida” superficial. Essa dúvida, de modo algum, se opõe à fé autêntica. O que essa dúvida faz é interrogar desapiedadamente a “fé” espúria da vida cotidiana, a fé humana que não passa de mera aceitação passiva da opinião convencional. Essa falsa fé, de que frequentemente vivemos, e que chegamos a confundir com nossa religião, está sujeita a interrogações inexoráveis. Esse tormento é uma espécie de prova de fogo em que somos forçados pela própria luz da verdade invisível que nos atinge no obscuro clarão da contemplação, a examinar, duvidar, e finalmente, rejeitar todos os preconceitos e as convenções que até o presente tínhamos aceito como se fossem dogmas.
A contemplação não é mera aquiescência nesse status quo, isso reduziria a contemplação ao nível da anestesia espiritual. A contemplação não é um analgésico. Assim, a contemplação queima até as cinzas os velhos clichês, slogans, palavras e raciocínios. Até os conceitos que parecem santos são consumidos juntamente com o resto. O que sobra é o vazio, onde ocorre a purificação do santuário interior para que imagem alguma ocupe o lugar que Deus ordenou fosse deixado vazio: O centro, o altar existencial que simplesmente é. Aí então Deus habitará.“Se alguém me ama guardará minha palavra e meu Pai o amará e a ele viremos e nele faremos nossa morada.” Jo 14,23
Por fim o contemplativo sofre a angustia de reconhecer que ele não sabe mais o que seja Deus. E na verdade isso é uma grande vantagem porque Deus não é um o quê, não é uma “coisa”. Esta é precisamente uma das características essenciais da experiência contemplativa. Ela vê que não existe uma “coisa” que se possa chamar Deus. Não existe “coisa alguma” que seja Deus, porque Deus não é uma “coisa” nem um “quê”, mas um puro “QUEM’. Deus é o TU diante do qual o mais íntimo de nosso “eu” desperta e é movido a uma tomada de consciência. Ele é o EU SOU diante do qual nós, com nossa própria e inalienável voz pessoal, lhe fazemos eco: “eu sou”.
Fpaiser ** Fernando Paiser – é o atual Coordenador Executivo da SAFTM – “Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton”
Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton apresenta o GETM - Grupo de Estudos Thomas Merton.
O GETM se propõe a desenvolver programas para estimular o estudo aprofundado de Merton e da espiritualidade contemplativa, em nível acadêmico, em todos os aspectos possíveis, fomentar a pesquisa e produzir conteúdo que leve às pessoas e à sociedade em geral o conhecimento de Thomas Merton e sua abordagem espiritual.
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