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Quando começa a existir um ser humano? A resposta depende do estatuto atribuído ao feto: científico, antropológico, ético, jurídico, religioso.
É uma incoerência defender a vida do feto e não se importar com a gestante. (HenriqueChendes/ Imprensa MG)
Élio Gasda*
O tema do aborto situa-se no delicado campo da ética aplicada para o inicio da vida humana. Em princípio, ninguém é favorável a esta medida extrema. Além da morte de um ser, o aborto é uma agressão ao corpo da mulher e deixa sequelas emocionais traumáticas. Pensar que abortar é uma decisão fácil para a gestante é ignorar a matéria. O aborto é um ato clínico que tem seu elemento técnico, jurídico, ético, psíquico. A ausência de um conceito teórico unívoco sobre o início da vida impede um consenso mínimo sobre sua legalidade.
Quando começa a existir um ser humano? A resposta depende do estatuto atribuído ao feto: científico, antropológico, ético, jurídico, religioso. A postura sobre o aborto depende do estatuto adotado. Mas, sequer há consenso no interior dos estatutos. Os impasses giram em torno do que se considera concepção. Conceber se refere a uma ação de receber no ventre um óvulo fecundado que, após a diferenciação celular, começa um processo de intercâmbio com sua genitora para constituir um novo ser. Aplicar o termo nova vida humana a um óvulo fecundado, a um embrião ou a um feto não é a mesma coisa. Existe mal-entendidos no emprego de palavras como vida, vida humana, vida humana individual e pessoa humana.
Os direitos atribuídos à pessoa humana são bens jurídicos. A noção de pessoa é jurídica. Foi no âmbito jurídico que a decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu a discussão ao julgar um caso envolvendo pessoas de Duque de Caxias (RJ) denunciadas por suposta prática do crime de aborto. O Tribunal de Justiça do Rio determinou prisão preventiva. O STF entendeu que as prisões não se sustentam, porque não estão presentes os requisitos necessários para decretar a prisão. Artigos do Código Penal que tipificam o crime de aborto (Art. 124.126) são de 1944, portanto incompatíveis com a Constituição Federal de 1988. Os artigos devem ser interpretados de forma a excluir a incidência de crime quando a interrupção voluntária da gravidez é realizada no primeiro trimestre da gestação. A decisão vale unicamente para o caso de Duque de Caxias. Ou seja, o aborto não foi despenalizado.
A posição do STF situa-se na esfera jurídica. Despenalização, legalização e legitimação não são sinônimos. Despenalizar o aborto não significa convertê-lo em lei. Somente a legalização o integraria na estrutura jurídica vigente. Contudo, converter o aborto em lei não significa que seja um ato justo. Pois se nem tudo o que é legal é justo, nem tudo que é ilegal é ilegítimo. Somente a legitimação fundaria a prática do aborto em princípios morais. A legitimidade incide na esfera da consensualidade dos ideais, dos fundamentos, das crenças e valores de uma sociedade. A despenalização não implica legalização e, muito menos, legitimação.
Em um Estado laico não cabe aos tribunais trasladar uma doutrina moral ou religiosa ao plano jurídico. O principal argumento da Igreja contra o aborto é fundado em verdades de fé: “Desde o momento da concepção, a vida do ser humano deve ser respeitada de modo absoluto, porque o homem é a única criatura que Deus quis por si mesma, e a alma espiritual de cada um dos homens é imediatamente criada por Deus; todo o seu ser traz a imagem do Criador” (Donum Vitae, 5). O ensino da Igreja é dirigido aos católicos. O Estado e os demais cidadãos estão dispensados de seu cumprimento. A pretensão de impor uma doutrina religiosa na legislação de um Estado laico gera muitas tensões.
O Cristianismo não é uma sociedade à parte. A Igreja tem algo a dizer. Bernard Haring ponderava que “a condenação da Igreja ao aborto é plenamente aceitável apenas se ao mesmo tempo todos os esforços possíveis forem feitos para eliminar as causas principais do aborto”. Ninguém é a favor de que mulheres desesperadas e abandonadas, vítimas de estupros sejam jogadas na prisão por não ter condições de manter uma gestação. Ninguém deseja que mulheres morram em clínicas clandestinas ou sejam tratadas como criminosas. O aborto clandestino é uma realidade. Em 2013, pesquisa do IBGE revelou que mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos fizeram ao menos um aborto na vida. A Organização Mundial da Saúde estima que a cada dois dias uma mulher brasileira morre vítima do aborto ilegal. Não se trata de um ato de uma pessoa isolada, mas de um contexto de relações. Existem muitos responsáveis, principalmente numa sociedade machista. Entre as causas podem estar a violência de gênero e, particularmente, a violência doméstica. Há situações nas quais a pessoa se sente incapaz de lidar com princípios morais. São casos em que a responsabilidade moral do aborto “pesa particularmente sobre aqueles que direta ou indiretamente a forçaram a abortar” (Evangelium Vitae, n.59). É uma incoerência defender a vida do feto e não se importar com a gestante. Essa realidade nos remete à nossa condição humana, entre a pertença ao outro e a si mesmo, entre o tudo e o nada de nossa frágil existência. A condição humana é uma condição fetal.
*Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). Escreve às quartas-feiras.
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