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Os cristãos das origens interpretam o sinal do Deus-Conosco, envolto em faixas, como sendo o resgate da esperança no sentido e significado do mundo tal qual o conhecem.
Nosso Messias vem de onde menos se esperava. (Reprodução)
Por Márcio Pimentel*
A sabedoria judaica impressiona. A interpretação da letra bíblica, favorecida em remotos tempos pelos sábios de Israel por histórias deliciosas de se ler, ousa completar algumas lacunas presentes nas Escrituras. Desse modo, a Tradição, ao lado da Escritura, oferece a integralidade da Palavra Divina, garantindo a vitalidade prometida pelo Deus dos Pais àqueles que se ocuparem de estudar a Torá: onde dois ou três estiverem reunidos estudando a Lei, ali minha Shekinah pousará.
Uma dessas histórias conta o bate-papo de Deus com Adão, quando esse, envergonhado pelo pecado, esconde-se do parceiro divino. Narra-se que o Senhor fez de tudo para que Adão assumisse sua parcela de responsabilidade em ter desobedecido uma ordem direta de seu Criador. Mas Adão não consegue reconhecer-se neste papel e transfere a culpa para a companheira. Eva terceiriza a culpa. O resultado é sabido: são expulsos do paraíso, da companhia de Deus. Nesse breve relato midráshico, o que nos importa é, sobretudo, o que segue: uma vez tendo proferido a sentença do exílio adâmico, Deus, advertido por um de seus anjos, recorda-se que já se iniciava o Shabat. Num ato de compulsiva misericórdia, chama Adão de volta, solicita que retome as vestes reais e sente-se no trono para ele destinado, pois aquele dia é de alegria e festa e não de sofrimento e dor.
Com essa breve introdução, poderemos adentrar no mosaico de possibilidades hermenêuticas que nos são concedidas neste tempo abarrotado de luzes e bons propósitos por ocasião do Natal. Embora a sociedade pareça ter esquecido, o motivo primeiro das festas natalinas é o significado do nascimento de um bebê pobre em uma pequenina vila, no interior da Palestina, há pouco mais de dois mil anos. Do ponto de vista historiográfico, tudo indica que a origem de Jesus seja Nazaré, vilazinha sem grande importância para a Sagrada Escritura hebraica e para a oficialidade do mundo judeu de então. Isso significa, de algum modo, “adulterar” a teologia messiânica oficial, pensada dinasticamente (descendente de Davi) e a partir do centro, o Reino de Judá, cuja capital é Jerusalém. É bom lembrar que a Galileia não era muito tolerada por seu caráter revoltoso e arriscadamente heterodoxo. Sua população era rotulada como possivelmente belicosa. A famosa Belém dos presépios entrou na história para situar teologicamente a figura messiânica de Jesus, fazendo-a corresponder com as expectativas escriturísticas. Na verdade, provavelmente, sua Belém é Nazaré, de modo que o “nosso” Messias vem de onde menos se esperava. E se lá não foi parido, certamente lá constituiu sua humanidade, sendo muitíssimo bem educado nas raízes mais exigentes e profundas do judaísmo de seu tempo.
O que tem a ver, então, o midrásh evocado com o nascimento de Jesus e as celebrações hodiernas de seu Natal? É importante situar a natividade de Cristo no horizonte das grandes profecias de Israel. Por essa razão Belém é importante. Embora o movimento messiânico seja historiograficamente mais recente, a teologia sobre promessa de um Messias que devolveria a ordem em um contexto de alta turbulência política e também religiosa como aquela do século I, penetrou o imaginário judaico, de maneira a considerá-lo como razão pela qual o próprio mundo foi criado. E esta fé foi e continua sendo motivadora de esperanças incríveis. O cristianismo surge da percepção de cumprimento dessas promessas messiânicas da parte de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré.
Para a Igreja, o messianismo de Jesus, evocado na cena de Belém e noutras passagens de sua vida, enraíza-se não mais na perspectiva do redentor político e também religioso do povo israelita, mas se ancora em um sonho mais antigo de Deus e que tem a ver com as suas pretensões para a humanidade que Ele laboriosa e artisticamente cria. Esse dado não é, de todo, uma invenção cristã. Podemos colher nos diversos midrashim registrados do Talmud, que o Messias irromperia desde o Paraíso. De certo modo, teologicamente, poderia ser dito que o Messias e Adão são contemporâneos. Sendo o Messias “uma das coisas que antecedem a criação”.[1] Essa leitura teológica (é bom que reafirmemos isso!) pode ser tranquilamente harmonizada com o pensamento dos Padres da Igreja, em particular Irineu: “O paraíso era belo e bom: o Verbo de Deus passeava aí constantemente e entretinha-se com o ser humano, prefigurando as coisas futuras, a saber que seria companheiro de habitação, falaria com ele, e estaria com os homens.”[2] Não é difícil fazer conexões com a posterior compreensão eclesial da identidade do Filho de Deus, preexistente com o Messias prometido e esperado.
Os cristãos das origens, judeus na raiz, interpretam o sinal do Deus-Conosco, envolto em faixas, como sendo o resgate da esperança no sentido e significado do mundo tal qual o conhecem. Sabedores, certamente, das antigas tradições, leem a si mesmos como a última edição daquele Adão dobrado sobre sua própria vergonha. Entendem, no entanto, retroativamente (após a páscoa) que esta humanidade ferida é também antídoto para a desordem do mundo tal e qual conhece, corrompido pelo desejo opulento de seus dirigentes políticos e religiosos. A humanidade daquele nazareno parece destacar-se de maneira absoluta dentre as “humanidades” do entorno. Para estes irmãos nossos da antiguidade cristã, até mesmo a mais absurda frustação (a cruz, o sepulcro) se convertem em signos repletos de luminosidade. A morte não é mais temida.
Aquele Jesus, cujos gestos e palavras são interpretados à luz das antigas promessas de Deus para o povo de Israel, traz um novo alento, um vigor que havia sido esquecido, uma resiliência que há muito, talvez, houvera se perdido. Sua pobre carne nazarena está marcada com as insígnias de uma majestade conferida já a Adão, mas que haviam sido abandonadas em seu surto de autorreferencialidade na época do Éden. Aquele ser humano parece recuperar tudo isso, ainda que envolto nas faixas de nossa transitoriedade, fragilidade e pobreza. E mais que isso, aquele ser humano põe a disposição de quem quiser esta mesma sua humanidade sanante.
Pois bem, o mundo que conhecemos também perdeu a memória sobre este sentido e significado do Natal. Talvez tenha se tornado uma festa cheia de luzes e cores, mas a humanidade redentora do Messias não está mais no centro. O que para os Santos Padres era a festa da nossa regeneração, tornou-se um baile de máscaras, uma efusiva alegria passageira não transformadora, não redentora e que não reorienta a existência. Na verdade, ainda há messianismo em nosso tempo, mas trocamos os personagens. Esse homem novo, capaz de renovar tudo por seu jeito, por suas opções, pela agudeza de sua percepção de Deus em conexão com as demandas mais profundas das pessoas, não é mais o menino de Belém, que encerra em si mesmo o sinal de nossa redenção. Agora, esse papel foi atribuído a outros.
Urge que os cristãos, primeiros responsáveis para que esta memória não desapareça completamente, conheçam “pela mensagem do anjo a encarnação do Senhor”, conforme rezamos no último domingo do Advento. E essa mensagem, é a mesma do midrásh, a mesma dada a Maria e também a José: no mundo segundo a óptica divina, o ser humano tem um lugar garantido. E não qualquer lugar, mas seu destino é o próprio trono de Deus. Essa é a experiência do Paraíso onde se encontram o Filho, o Messias e Adão. Sua dignidade emerge magnificamente. Esse lembrete é, por si só, salutar. O Natal é a proclamação da dignidade da carne humana, isto é, de nossa natureza mais íntima, de quem somos. E essa dignidade subsiste aos olhos de Deus apesar daquilo que venhamos a nos tornar ao atravessar os caminhos da história. Nem méritos e nem deméritos, embora a firam e devastem, podem anulá-la.
Para concluir, é preciso afirmar com toda clareza: o Natal é festa de nossa regeneração. É um evento pascal, que reclama a necessidade permanente de transformarmo-nos, configurando nossa humanidade concreta ao projeto inicial de Deus para nós. É assim que o Messias nascido em Belém chamado Jesus de Nazaré, conforme as Escrituras, pode nos resgatar. Talvez a imagem de um Deus envolto nas faixas de nossa humanidade já não seja tão eloquente, quando os “direitos humanos” são achincalhados como coisa de “esquerdopatas” ou comunistas e onde a irreal meritocracia e a higienização social estejam sendo reeditadas e tendam a se tornar precípuas no contexto em que vivemos. Mas para nós, os cristãos, a memória do Natal continua a ser alentadora e esperançosa nesta época sufocante porque – decisivamente – é um evento subversivo. Sendo assim: celebremos a festa de nosso renascimento, pois como dizia São Leão Magno: “O natal da cabeça é também o natal do corpo”.
[1] SCHOCHET, Jacob Immanuel. Mashiach. O princípio de Mashiach e da Era Messiânica segundo a Lei judaica e sua Tradição. São Paulo: Maayanot, 1992, p. 37.
[2] IRINEU DE LIÃO. Demonstração sobre a pregação apostólica. In. LEÃO CORDEIRO, José. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p.174, n. 524.
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*Márcio Pimentel é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especialista em música ritual pela FACCAMP, em Liturgia pela PUC-SP, licenciando em Educação Musical pela UEMG. Atualmente exerce a função de assessor eclesiástico para a Liturgia na Arquidiocese de Belo Horizonte e preside pastoralmente uma comunidade paroquial.
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