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O tempo litúrgico do Natal convida-nos a recuperar a dignidade de cada ser humano, ao detectar a divindade que carrega dentro de si.
Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano. (Divulgação)
Por Jaldemir Vitório SJ*
A comercialização do Natal lançou densa nuvem sobre o sentido litúrgico e espiritual de um tema fundamental da fé cristã: o Mistério da Encarnação. A sociedade de consumo, alavancada pela publicidade, transformou o período natalino em fonte de lucro. E o avalia como bom ou ruim pelo parâmetro econômico. Por conseguinte, o Natal se identifica com comida e bebida, trocas de presentes, enfeites das casas, comemorações carregadas de sentimentalismo vazio e muitas outras exterioridades, descomprometidas com o Evento que está na origem de tudo aquilo, o nascimento de Jesus de Nazaré.
Subjacente ao clima contagiante de fraternidade, a comover até corações duros, está o paradoxo de se deixar fora da festa aquele a quem se festeja. Estando Jesus excluído, seu lugar é ocupado pelo Papai Noel, cuja imagem onipresente de velhinho bonachão coloca o homenageado de escanteio, relegando-o ao esquecimento. O caridoso São Nicolau (séc. III-IV), que está na origem da tradição de distribuir presentes às crianças, foi recriado pela publicidade da Coca-Cola, no séc. XIX, e introjetado no imaginário infantil. O Menino Jesus e o presépio estão fora de cogitação, quando o tema é o Natal dos publicitários, dos comerciantes e dos consumidores.
Outra vertente do paradoxo natalino diz respeito à contaminação das consciências de pessoas autodenominadas cristãs e, até mesmo, engajadas em instituições eclesiais. O poder de convencimento da mídia anestesia-lhes as consciências, nivelando-as com quem está longe de se declarar cristão e abraçar o ethos evangélico como projeto de vida. As celebrações natalinas da sociedade de consumo colocam no mesmo patamar, sem qualquer distinção, muitos que, da boca para fora, professam ser discípulos e discípulas de Jesus e quem está, simplesmente, interessado em comer, beber e festejar. Triste destino do projeto de Jesus de Nazaré!
A beleza do Natal cristão alicerça-se na correta compreensão de um versículo lapidar do evangelho de João: “O Verbo fez-se carne e armou sua tenda entre nós!” (Jo 1,14). A primeira parte da afirmação aponta para algo de extrema relevância, qual seja o encontro da transcendência e da imanência, do divino e do humano, da eternidade e da história, do absoluto e do relativo no advento de Jesus de Nazaré, em quem “o Verbo se fez carne”. Paralelamente ao processo de humanização da divindade, acontece a divinização da humanidade. Tal convergência do humano e do divino abre perspectivas insuspeitadas de interpretação de Gn 1,27: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou”, onde ambas as dimensões se fazem presentes na intenção do Criador.
A metáfora da segunda parte do versículo joanino sublinha a dinâmica do Mistério da Encarnação, feita de simplicidade, de escondimento e de pobreza. “Armar a tenda” evoca provisoriedade, fragilidade e, sobretudo, solidariedade. O Verbo que se faz carne, jamais, será refém de estruturas imponentes e sólidas, sem dinamismo histórico, descoladas da caminhada do Povo de Deus. A tenda, pelo contrário, favorece a mobilidade, de modo a se poder estar onde está a humanidade carente de salvação, em sua eterna peregrinação. Ela permite ao Verbo ser, de fato, “Emanuel”, na vida das comunidades de fé, em marcha, rumo à comunhão definitiva com o Pai. O Verbo peregrino recusa-se a se tornar refém e se deixar enquadrar em dogmas e esquemas caducos. Ele é livre para armar e desarmar sua tenda para estar onde a humanidade clama pela misericórdia do Pai.
O texto joanino exige pensar a antropologia cristã em perfeita sintonia com a cristologia. Em outras palavras, o evento Jesus de Nazaré torna-se referência para se falar da humanidade. Assim, quanto se afirma dele, se desdobrará nas afirmações a respeito de qualquer ser humano. Um imenso desafio a ser enfrentado diz respeito ao descompasso instaurado entre antropologia e cristologia. Uma cristologia em tom maior, exaltando a divindade de Jesus e seu total enraizamento em Deus, contrapõe-se a uma antropologia em tom menor, que acusa o ser humano de pecador e considera a humanidade massa damnata, “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. A superação do descompasso acontece na perfeita convergência entre antropologia e cristologia, ambas feitas em tom maior, recusando-se a ver o ser humano pelo avesso. A humanidade e a divindade de Jesus de Nazaré encontram-se em cada ser humano, “imagem e semelhança de Deus”.
O tempo litúrgico do Natal convida-nos a recuperar a dignidade de cada ser humano, ao detectar a divindade que carrega dentro de si. A antropologia cristã de viés positivo poderia ser uma porta aberta para a superação do pessimismo que distorce a visão de muita gente, levando-as a rotular o semelhante de maneira incompatível com os anseios do Criador. Se fôssemos capazes de vislumbrar o divino que existe no mais íntimo de nós e no mais íntimo do nosso próximo, com certeza, estaríamos aptos para construir o mundo mais justo, humano e fraterno, ansiado por todos.
Por outro lado, o Natal confronta-nos com a enorme responsabilidade de reverter o processo de desconstrução da civilização, que caminha a passos de gigante e se torna visível, mormente, na banalização da vida e no desrespeito aos direitos humanos elementares. A recordação do nascimento de Jesus de Nazaré estimula as pessoas de boa-vontade a se empenharem, de corpo e alma, no refacimento da dignidade humana aviltada, para que, nelas, brilhe luminoso o clarão da divindade que carregam dentro de si. Ao se fazer humanidade e habitar entre nós, o Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.
Um pensamento lúcido de Santo Atanásio (séc. III-IV) – “Deus se fez homem, a fim de que o homem se tornasse Deus” – ilumina o sentido do Natal. A isso, a teologia oriental chama de théosis, divinização ou deificação do humano. Cada Natal é um convite aos discípulos e às discípulas de Jesus para deixarem transparecer a riqueza da divindade, escondida no mais íntimo de si.
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*Jaldemir Vitório é jesuíta, mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É autor e organizador de vários livros, dos quais destacamos A pedagogia na formação - Reflexões para formadores na Vida Religiosa (Paulinas, 2008).
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