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Os próximos capítulos da TV norte americana colocarão a mulher como epicentro de uma renovação muito pertinente.
Atrizes consagradas do cinema vivem um enredo de crime e mistério. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*
A última era de ouro da televisão norte americana (anos 90 e a primeira década do século XXI) foi protagonizada por homens durões, porém, desajustados (o maníaco depressivo Tony Soprano; o alcoólatra Don Draper, de Mad Men; praticamente todo o elenco de The Wire; o corrupto policial Vic Mackey, de The Shield; o misantropo Dr. Gregory House...). Dessa época, a única série que podemos considerar tão relevante e influente quanto os exemplos citados, mas com temáticas do universo feminino, é Sex and The City.
Há algo de novo no ar e a série Big Little Lies (que teve estreia mundial no último domingo) pode ser o marco inicial de uma nova reviravolta na teledramaturgia como a conhecemos. E, ao que tudo indica, dessa vez serão as mulheres a capitanear essa jornada.
Na nova série da HBO, atrizes consagradas do cinema desembarcam na TV para viver um enredo de crime e mistério. Em uma pequena cidade ensolarada da Califórnia, entramos na intimidade de um grupo de mães de alunos do primário de uma escolinha modelo do lugar. Tudo parece ir bem, todos parecem felizes... Mas as aparências irão sendo lentamente desconstruídas, à medida que os episódios avançarem.
Já vimos isso antes. Inúmeras e incansáveis vezes (a clássica Peyton Place - Caldeira do Diabo -, a cult Twin Peaks e a recente Stranger Things são exemplos bem sucedidos dessa premissa mais que batida).
A produção assume o formato de minissérie mas dialoga mais profundamente com a novela, a soap norte americana, de infindáveis capítulos e transmitida nos horários menos cobiçados das grades de programação ianques; coisas bem açucaradas, maniqueístas e que assumem o melodrama despudorado como lema (muitas vezes involuntariamente).
Apesar de ir além, lembra aqueles realities The Real Housewives - de Nova York, de Atlanta, de Nova Jersey, de Beverly Hills, de Miami... tanto faz a cidade. Os dramas pessoais dessas donas de casa abastadas acabam sendo sempre muito parecidos e, não raro, insignificantes - quer seja na dimensão social ou pessoal. O motivo pelo qual esse tipo de programa encontra audiência segue sendo uma incógnita para mim.
Big Little Lies é, na verdade, um grande flashback. Um crime acontece na escolinha - do qual só vemos imagens soltas e desfocadas. Alguém foi morto, porém, não sabemos sua identidade e nem a do responsável pelo assassinato. Depoimentos de personagens coadjuvantes, dados no âmbito da investigação policial, funcionam como comentário e fio condutor da história pré-crime e da trajetória que levou as protagonistas até aquele momento. É um tipo de coro grego, até para realçar a ideia de que é impossível contrariar o destino.
(Essa organização narrativa de idas e voltas no tempo é a base de séries como Damages e How to Get Away with Murder... - Não por acaso duas séries também policiais e também com tramas girando em torno de mulheres. É aquela velha história: deu certo uma vez, a indústria repete o truque ad nauseam.)
As oscarizadas Nicole Kidman e Reese Whiterspoon funcionam. Reese, cujos poderes cômicos já são conhecidos de todos graças à série Legalmente Loira, faz diferente dessa vez. Parece estar imitando a comediante Amy Poehler (ex- Saturday Night Live e atriz principal da divertida Parks and Recreation) e se divertindo com isso. Já Nicole, por enquanto, apenas está lá, nos brindando com sua presença magnética e sem se preocupar em atuar. À medida que a trama for andando, sua personagem irá ser o centro de uma discussão sobre violência doméstica; dá para sentir no ar um eco da abordagem que Paul Verhoeven deu ao tema no filme Elle, um dos mais polêmicos lançados em 2016 - o que pode vir a ser muito interessante.
Baseada no livro best-seller homônimo, Big Little Lies pode se consagrar como o grande anti The Stepford Wives, livro de Ira Levin que já gerou dois filmes (em sua segunda versão, estrelado, curiosamente, também por Nicole Kidman) e que conta a história de uma cidade, a Stepford do título, onde todas as esposas são cordatas e obedientes. Acaba-se descobrindo que tudo é um jogo conspiratório e sobrenatural patrocinado pelos maridos de Stepford; uma contundente crítica ao machismo, saída da pena do mesmo autor do inesquecível O bebê de Rosemary.
Sem dúvida nenhuma, trata-se de uma mudança de paradigma. Os próximos capítulos da teledramaturgia norte americana colocarão a mulher como epicentro de uma renovação muito pertinente. Saem de cena os marmanjos em crise de meia idade que buscam na agressividade e na violência a solução para seus problemas - muitas vezes também imaginados - e ganham o palco as questões que afligem e importam para a mulher em nossa sociedade hoje.
O caminho vem sendo aberto há alguns anos por produções como Girls, Orange is the New Black, The Good Wife e até mesmo o mais recente Divórcio, com uma Sarah Jessica Parker amadurecida, mostrando que Carrie Bradshaw ficou mesmo no passado (provavelmente escondida no closet em meio a dezenas de pares de Louboutin). O mundo de Sex and The City não cabe mais no que sonham para si as mulheres ou mesmo com a imagem que fazem de si mesmas.
Segundo classificação da Rolling Stone EUA, em praticamente metade das 25 novas séries e minisséries mais aguardadas, com estreia prevista para 2017, a trama principal é desenvolvida a partir de personagens femininos.
Este ano, veremos Jessica Lange e Susan Sarandon encarnando Joan Crawford e Bette Davis, na encenação dos bastidores do filme O que terá acontecido a Baby Jane? na primeira temporada de Feud (mais uma aventura - e provável sucesso - do criador de Glee, American Horror Story e de American Crime Story).
Aguardamos ansiosamente também o novo capítulo da franquia Star Trek, a série Discovery, onde, pela primeira vez, a história será contada não pelo ponto de vista do comandante da nave, mas do oficial imediato - nesse caso, uma mulher negra.
Mesmo o primeiro episódio não empolgando tanto, a importância de Big Little Lies já está posta: aceitou-se o desafio de se contar uma história com que a mulher do nosso tempo possa se identificar e se relacionar verdadeiramente - e com bom humor. Não há mais espaço para mulheres belas, recatadas e do lar (nem nas ruas, nem na TV). O mundo é outro e a televisão vem sabendo acompanhar essa mudança.
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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