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A partir das conferências de Medellín e Puebla, Igreja assumiu a evangélica 'opção preferencial pelos pobres', com as questões concretas da vida dos povos do continente.
15ª Estação da Cruz da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel, de influência libertadora. (Reprodução)
Francisco das Chagas de Albuquerque*
O período de ditaduras na América Latina começou em 1954 na Guatemala e se estendeu até 1990 quando voltou a democracia no Chile. No Brasil, o Regime Militar se instalou com o golpe de Estado desfechado em 1º de abril de 1964 e se prolongou até 1985. Nesse período vários sujeitos sociais, entre eles a Igreja e militantes cristãos, atuaram no sentido recuperar o estado de direito. A teologia desempenhou importante papel no processo de reconstrução da normalidade política e busca da justiça social.
Contexto do golpe civil-militar
Enfrentava-se, aqui, como em outras nações latino-americanas, grave crise humana, social e espiritual caracterizada por uma situação de injustiça, opressão, pobreza, analfabetismo, migrações forçadas e violências. Diante desse quadro punha-se a questão de uma revolução socialista. Estava em curso um processo populista deflagrado por forças que pregavam reformas de base. Difundia grande temor do comunismo. Criou-se um clima de insegurança, abrindo a porta para a convocação dos militares a fim de assumirem o governo do país. A tomada do poder resultou de uma articulação entre setores conservadores da política brasileira com as elites empresariais, os meios de comunicação. Além disso, houve robusto apoio logístico, material e financeiro de Washington. Nesse contexto, como parte da sociedade, a Igreja não se manteve indiferente, mas tomou posição publicamente. Aqui entra a teologia da libertação como elemento integrante de uma profética vivência da fé. Como “pensar crítico da fé”, esta teologia desempenhou significativa função orgânica.
Posição da Igreja institucional
A posição da Igreja Católica ante a ditadura no Brasil define-se como algo muito complexo, pois desde o primeiro momento, enquanto instituição, ela teve dois posicionamentos: apoiou e contradisse o golpe. Já nos primeiros momentos após o golpe houve representantes do episcopado que se manifestaram favoráveis a tal ação política e aqueles que estavam claramente contrários ao fato. No entanto, pesou mais a aprovação do que a negativa. Em 02 de julho de 1964 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil torna pública sua posição de apoio ao governo que estava em exercício havia quatro meses. Inclusive ordenou a execução de um Te Deum, ação de graças, por considerar que o País estava livre do “comunismo ateu”. Porém, ressalvava que era necessária atenção para não se violar os direitos humanos.
Mas não tardou e o regime foi silenciando os partidos políticos, os sindicatos, a imprensa, que eram organizações com relativa capacidade de defender dos direitos dos setores da população que não tinham voz.
A Igreja, por sua vez, tinha consciência de ser a única instância para a qual se dirigiam as esperanças da grande parte sofredora da população brasileira. Este povo movimentou-se indo ao encontro dos representantes eclesiásticos, o que motivou e preparou a Igreja para tomar uma atitude condizente com o evangelho naquela conjuntura. Tal movimento, que teve efetiva participação do movimento leigo da Ação Católica através da JUC e da JOC, a despertou para a necessidade de uma ação contra o regime e os enormes problemas dele consequentes.
Novo momento eclesial e teológico
Por outro lado, essa transformação na sociedade brasileira ocorre precisamente quando em está em curso o Concílio Vaticano II (1962-1965), ocasião de renovação da Igreja e da teologia. Entrava-se em uma nova etapa da missão da Igreja no mundo moderno e da reflexão, especialmente no continente latino-americano. Mas, como Igrejas locais, na América Latina e no Brasil, a efetiva tomada de consciência e novo posicionamento ante os problemas da sociedade, como instituição, só aconteceria com a Conferência de Medellín (1968). A partir de então, aprofundando-se em Puebla (1979), foi progressiva a preocupação da Igreja com as questões concretas da vida dos povos do continente, a partir da evangélica “opção preferencial pelos pobres” (Puebla, n. 1134-1165). Daí resultou um “distanciamento crescente das autoridades governantes, um posicionamento crítico frente a suas medidas. Uma defesa corajosa dos Direitos Humanos. E a consequente perseguição, repressão, o confronto” (BRASIL, 1985, p. 148). Cresce a perseguição e repressão sistemática a todos os que se opõem ao governo militar, incluindo pessoas envolvidas na missão da Igreja.
Em sua 15ª Assembleia Geral, realizada em Itaici, de 8 a 17 de fevereiro de 1977, a CNBB fala claramente contra a situação política da sociedade brasileira. Denuncia a violência e violação dos direitos dos indivíduos e instituições, que eram praticas em nome da “segurança nacional”. Afirma que a segurança, em seu sentido próprio, diz respeito ao bem comum e constitui um imperativo moral indispensável a vida da Nação. “Entretanto, quando, em nome deste imperativo, o Estado restringe, arbitrariamente, os direitos fundamentais da pessoa, subverte o próprio fundamento da ordem moral e jurídica” (CNBB, 1977, n. 35).
Papel da teologia da libertação
Como esta teologia está presente nessa história? Sem dúvida nenhuma, a reflexa crítica da fé em perspectiva libertadora teve relevante papel nesse período da história política do Brasil. Como reflexão crítica sobre a sociedade e a ação da Igreja, a teologia da libertação desenvolve uma releitura da Revelação que as interpela; como teoria gestada à luz da fé integra uma intenção prática que se volta à práxis histórica (cf. GUTIÉRREZ, 2004, p. 67). Dar a razão da esperança (1Pd 3,15) em um contexto de desumanização exige uma inteligência da fé que corresponda à originalidade da fé no Cristo morto e ressuscitado: ser libertadora. Nesta linha, a teologia da libertação procura ser apenas uma serva desta fé que busca o entendimento de si própria à luz da revelação, para responder de maneira fiel aos anseios dos seres humanos por vida digna e em plenitude.
A ação eclesial contra as injustiças e a violência perpetradas por tal regime se fundamenta não em uma opção política partidária ou ideologia qualquer, mas sim na fé em Cristo Jesus e seu evangelho. A reflexão teológica da fé em chave libertadora se desenvolveu fortemente no final dos anos 60 até os anos 80. Tal atividade teórico-prática foi realizada a partir do compromisso de muitos cristãos, entre eles teólogas e teólogos, os quais ajudavam com a reflexão os cristãos e a Igreja institucional a posicionar-se com consciência crítica e comprometida frente àquela realidade.
Nesse caminho de libertação, palmilhado por diferentes sujeitos e distintas motivações de fundo, não se pode esquecer as Comunidades Eclesiais de Base. Elas foram e ainda são um modo “original” de ser Igreja em nosso continente e no Brasil. Em profunda sintonia com o evangelho elas conjugam a prática religiosa da fé e o compromisso social por esta exigido. Tal vivência profética da fé necessita sempre do suporte teórico, para evitar que se torne mera busca de transformação histórica sem a devida razão de ser e agir. O pensamento teológico libertador foi de grande importância no fortalecimento do compromisso das CEBs.
Portanto, a teologia da libertação prestou relevante contribuição à missão da Igreja e aos homens e mulheres comprometidos na luta pela defesa da vida e os direitos humanos na sociedade brasileira ao longo do regime ditatorial. Ajudou a iluminar de modo crítico e libertador a ação de resistência à repressão e reconstrução do estado de direito em nosso país.
Referências
CNBB. Exigências cristãs de uma ordem política. São Paulo: Paulinas, 1977.
CELAM. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. São Paulo: Loyola, 1980.
CAMPOS, José Narino de. Brasil: uma Igreja diferente. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 1981.
Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
GUTIÉRREZ, G. Teología de la liberación. Salamanca: Sígueme, 2004.
SOUZA, Robson Sávio Reis (Org.). 50 Anos do Golpe Civil-militar: a Igreja e a Universidade. Belo Horizonte: FUMARC, 4014.
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Dom Paulo Arns: O Cardeal dos Direitos Humanos
*Francisco das Chagas de Albuquerque, doutor em Teologia. Professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
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