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Na verdade o que buscamos talvez seja a verdade, o sentido certo a tomar para se viver em paz.
Se a desistência é uma revelação a desistência a utopia é o fim. (Reprodução)
Por Ricardo Soares*
A desistência é uma revelação, dizia Clarice Lispector. Sendo assim creio que no decorrer de nossas vidas acabamos desistindo de uma porção de coisas por serem elas inviáveis ou inalcançáveis. Inclusive nas questões do amor. Mas, apesar do ceticismo, também está dentro dos homens a crença inabalável nas utopias. É quando um homem chega na janela de sua casa e apesar de ver nas ruas um cenário devastado ainda crê que ali possa surgir uma paisagem bonita . É quando um homem imagina que apesar das cinzas que sempre ficam após incêndios ainda possam brotar cedros, carvalhos e eucaliptos em meio a aridez.
Da janela o homem vê, de fato, um vulcão cuspindo fogo. Está dentro de sua casa vendo televisão e comendo pipoca e finge que o vulcão não está ali eterno,ameaçador, presente, prestes a explodir e transformar o cotidiano em nada. Sequer um retrato na parede. Não serão outras mãos de homens bombeiros suficientes para aplacar esta fúria. Não será toda a água do mundo capaz de deter a erupção. Mas o homem crê em milagres.
No meio de um congestionamento na marginal do Tietê outro homem crê que a vida assim, parado em meio aos carros, não tem sentido. Pensa em sol, praias, dunas , um pôr de sol em Paraty. Desliga o rádio e vê o rio, sinuoso e imundo . Pensa que está é sua visão particular de fim de mundo com motoristas irritados e suados em mangas de camisa que ao acionarem nervosamente as buzinas de seus carros imaginam que possam por fim ao congestionamento. Mesmo assim ele crê na utopia.
Se a desistência é uma revelação a desistência a utopia é o fim . E nunca queremos o fim mesmo andando pelo centro velho de São Paulo onde a visão dos desvalidos e remediados sem sorriso nos apontam para um beco sem saída. Há lixo acumulado , há tráfico de crack, extorsões, malvadezas , incompreensões. Mas há sempre a esperança do conserto.
Em casa, na zona oeste, a mulher de meia - idade quebra o lindo vaso de cristal da Bohemia que foi herdado da avó. A mulher senta na beira do sofá e chora um choro antigo, grosso, barulhento, imemorial. Chora por todos os seus mortos e pelos vivos da família. O vaso era algo muito além da memória. Mas ela estanca o choro quando lembra que a memória fica e que na gaveta da penteadeira ela tem uma foto do vaso partido. A eterna utopia se alimenta de lembranças.
Há sim a lembrança dos santos, dos mártires, dos injustiçados e dos torturados. Existe a lembrança da dor e do medo. Mas sobrevivem as danças tribais, o sorriso, a celebração da alegria, o reinado de Baco e de Dionísio. O mundo todo é uma imensa nostalgia das tragédias gregas. O presente é novelão mexicano , a bizarrice na tv, as disputas por aquilo que já perdemos.
A utopia vai sobreviver enquanto os homens continuarem a pedir desculpas por seus erros. E a utopia vai ganhar forças quando outros tantos de nós também aprenderem a pedir desculpas. Na outra mão temos que aprender a conceder o perdão, a entender que nenhum erro na verdade é cometido sozinho. Ele é conseqüência de outros erros. E isso transcende a culpa e as tradições cristãs.
Na minha mesa de trabalho há uma imagem de Buda e outra de São Francisco de Assis. E por que as tenho e as mantenho? Na verdade não sei ou nunca me perguntei de verdade. Talvez seja minha pequenina utopia. Talvez porque estando sempre a mirá-las enquanto escrevo eu imagine que por osmose eu apreenda alguma coisa deles. Sobretudo o perdão.
O homem no trânsito, o homem olhando a janela e vendo o vulcão e a mulher que quebra o vaso de cristal somos todos nós. Sou eu. Minhas mãos e meus sentidos não alcançam a santidade . Na verdade o que buscamos talvez seja a verdade, o sentido certo a tomar para se viver em paz. Viver este começo de século cheio de apelos e desvios é complicado e muito perigoso. Razão e emoção cruzando sempre em perigosas mãos de dupla via. Não aprendemos, é certo, a ofertar a outra face. Mas a verdadeira superação dos instintos é seguir tentando. Isso é utopia maiúscula. Nascemos nus e imperfeitos. Seguimos vestidos de armaduras e imperfeitos. A desistência é uma revelação. Mas a desistência à utopia é não estar vivo.
Ricardo Soares é diretor de tv, roteirista, escritor e jornalista. Publicou 7 livros e dirigiu 12 documentários. Escreve às segundas e quintas no DOM TOTAL.
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