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Bom de letra, bom de leitura, bom de idiomas, cortante, embora doce no falar, era dono de uma personalidade rara e enigmática.
O rapaz latino americano, leitor Cabral, de sua Escola de Facas, era bom de verbo e de
precisão linguística. (Reprodução)
Por Eleonora Santa Rosa*
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes – um dos maiores nomes da MPB, em todos os sentidos. Belchior, Bel(x)ior, Belquior, Belchiór, Belchiôr, reclamava sempre da pronúncia errada de seu nome, de renome, artista nato, às vezes chato, capaz de lavra fina e sofisticada ironia, de palavra afiada, de surpresas várias, do canto falado, um menestrel de primeira interessado em outras artes. Fez a cabeça de muita gente, fez a minha cabeça, a de meus amigos geracionais, e continua fazendo, de modo residual ou principal. Bom de letra, bom de leitura, bom de idiomas, cortante, embora doce no falar, era dono de uma personalidade rara e enigmática. Autor de letras antológicas, de canções marcantes, não há quem não tenha sido tocado de alguma forma por uma música de Belchior. Voz anasalada era um ‘ganho’ no seu canto singular, à sua própria moda, a palo seco, como os versos de João Cabral:
cante seco, esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
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Belchior bem jovem, com o hábito de frade capuchinho. |
Destacou-se desde o início de sua carreira. Prestei atenção nele, ainda adolescente, quando ouvi a delicadíssima Mucuripe na voz de outro desconhecido, Fagner, então seu amigo, em seu primeiro disco, o histórico Manera Fru Fru, Manera: O Último Pau-de-Arara. Inesquecível, ali já se desenhava a marca de um jovem estranho, Belchior, autor da melhor faixa do LP. Pasma, ouvi e jamais esqueci a beleza da letra:
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar...
Estudante de Medicina, poderia ter sido, quem sabe, um grande médico, mas quis seu destino, para nossa sorte, que se projetasse como compositor (extraordinário):
Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém
O rapaz latino americano, leitor Cabral, de sua Escola de Facas, era bom de verbo e de precisão linguística. Sua ligação com a poesia era patente e o apreço/diálogo/homenagem ao mestre pernambucano reapareceria numa outra canção, não por acaso intitulada A Palo Seco – a palavra como lâmina, o corte do verso preciso, construtivista, de artesão musical. Moço de economia melódica, sempre próximo à poesia, morreu traduzindo a Divina Comédia, em seu privado purgatório, saída do ‘inferno’ em mistério de fim de vida.
Calígrafo, pintor, leitor preparado, bem formado e informado, como não lembrar o miglior fabbro del parlar materno (Arnaut Daniel/Dante Alighieri). Nosso menestrel, transmutado em lenda, ressoa agora e para todo o sempre em seu próprio réquiem:
E eu inda sou bem moço pra tanta tristeza.
Deixemos de coisas, cuidemos da vida,
Senão chega a morte ou coisa parecida,
E nos arrasta moço sem ter visto a vida
Este artigo foi escrito na madrugada da morte do compositor Belchior.
Já estava esboçado como tema e seria objeto de uma próxima coluna. Sua morte repentina antecipou, infelizmente, o mote. Uma enorme perda!
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*Eleonora Santa Rosa jornalista, produtora cultural, ex-secretária de Cultura de Minas Gerais.
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