sexta-feira, 27 de outubro de 2017

500 anos da Reforma, e agora?

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Ser protestante significa resgatar o espírito dos primeiros reformadores e ser contra as instâncias hegemônicas e suas articulações colonizadoras.
Reforma protestante remete a um movimento dinâmico, complexo e diverso que abrange anseios por mudança.
Reforma protestante remete a um movimento dinâmico, complexo e diverso que abrange anseios por mudança. (Jerry Kiesewetter/Unplash)
Por Carlos Cunha*

O dia 31 de outubro de 2017 é uma data comemorativa para a tradição protestante. A Reforma completa o aniversário de 500 anos. Já desde 2015, observamos diversas movimentações em prol deste evento. Por exemplo, a indústria de brinquedos alemã Playmobil fez um bonequinho de Martinho Lutero com a venda de 30 mil unidades em apenas 72 horas. Um recorde de vendas! Outra iniciativa comemorativa envolve os Correios do Brasil e da Alemanha que, simultaneamente, lançam o selo com o retrato do precursor da Reforma e a famosa “Rosa de Lutero” – símbolo pessoal que resume a sua fé. Há também eventos comemorativos na Alemanha e por todo o mundo fazendo memória ao movimento reformador, assim como inúmeros encontros em escolas, seminários, faculdades, igrejas e espaços diversos pensando e repensando sobre os limites e as contribuições dos 500 anos de Reforma Protestante.

Em 1517, no dia 31 de outubro, o monge agostiniano Martim Lutero (o nosso Martinho) torna público um texto com as suas 95 teses. Se ele afixou ou não na porta da Igreja de Todos os Santos do castelo de Wittenberg não vem ao caso. O fato é que o evangélico Lutero (a caracterização mais apropriada para Lutero e sua obra, segundo o teólogo luterano Walter Altmann) faz conhecer a todos as suas inquietações diante de um clero e de uma Igreja que se corromperam. O convite para a discussão estava lançado ao público e, em pouco tempo, as respostas começavam a surgir de todas as direções. A Igreja, a sociedade e a academia reagiram às provocações de Lutero. É verdade que o anseio por reforma faz parte do cristianismo desde o seu nascimento, mas ficou mais acentuado com os místicos medievais, passando pelos movimentos reformistas, tomando forma com os pré-reformadores e, finalmente, eclodindo com o ato público de Lutero. Portanto, o “monge impossível” (apelido dado por Nietzsche) é porta-voz de uma época que não suportava mais o estado de degradação da Igreja cristã no ocidente.

A época de Lutero não é muito diferente da nossa. As 5 solae (sola Scriptura, sola gratia, sola fide, solus Christus e soli Deo gloria), os princípios fundamentais da teologia reformada, como popularmente ficaram conhecidas, recebem hoje um incremento tipicamente brasileiro: “Sola mento”. É piada, claro! Mas não sem sentido. Presenciamos, infelizmente, as coisas mais absurdas feitas em nome de Jesus, tanto no meio evangélico quanto no espaço católico. As “igrejas” de mercado e sucesso não têm limites e nem escrúpulos. Uma lástima! A pergunta “e agora?” do título da nossa reflexão remete à crise de significado do nosso tempo que envolve não só a esfera da religião, mas todas as demais instâncias da vida. Que tipo de reforma precisamos? Daquela que nos faça voltar à fé, à esperança e ao amor, as virtudes teologais. Segundo o apóstolo Paulo: “A maior delas, porém, é o amor” (1Co 13,13). Sem amor não há reforma que dê jeito. O Brasil e o mundo precisam de testemunhos de amor engajados numa manifestação explícita de fé cristã reformada e protestante.

A fórmula “A Igreja é reformada e está sempre se reformando” (Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est) aponta para o estado permanente de reconstrução de uma Igreja que busca ser referência no mundo. Embora tal expressão não apareça em nenhum dos reformadores do século XVI, a ideia já estava presente, segundo Altmann. De Agostinho ao teólogo reformado holandês Visser´t Hooft (1917-1985), passando por Karl Barth, a fórmula é um convite à Igreja a manter um estado permanente de inacabamento, isto é, de sensibilidade diante às questões do mundo e do humano. Na tradição cristã, Deus é imutável, mas não a teologia, a Igreja e o mundo. O mundo muda, assim como as pessoas e os seus questionamentos. Uma Igreja sempre em reforma necessita ouvir atentamente estas indagações e se colocar de forma pertinente dizendo a sua própria palavra. Sem ser exclusivista, prepotente e intolerante, é claro.

No contexto de uma Igreja em reforma permanente, ser protestante significa resgatar o espírito contestador dos primeiros reformadores. Contestar, protestar contra as instâncias hegemônicas e suas articulações colonizadoras, sejam no âmbito do poder, do ser e do saber. O termo “protestante” nasceu num ambiente assim. Em 1529, na Dieta de Speyer II, uma elite católica tentou tirar o direito conquistado em 1526 (Dieta de Speyer I) da livre decisão dos governantes em assumir o direito da Reforma no ensino e nos cultos luteranos em seus territórios. Uma minoria “protestou” contra tal decisão e assim surgia o movimento protestante englobando um conjunto de Igrejas cristãs nascidas direta e indiretamente da Reforma do século XVI.

O espírito contestador manifesta mesmo quando a própria Reforma se vê mancomunada com o poder hegemônico colonizador. O que pouca gente sabe é que a Reforma passou também por reforma. Reforma da Reforma. É a Reforma radical de Thomas Müntzer, o “teólogo da revolução”, segundo Ernest Bloch. Como um movimento de renovação espiritual e eclesiástica contestador das alianças espúrias entre as igrejas territoriais, a católica e a protestante, a Reforma radical optou por viver o evangelho fora da ordem estabelecida. Entre os marginalizados, no caso os camponeses, os profetas de Zwickau, Tomas Müntzer e André Karlstedt, empenharam-se pela renovação e radical transformação da realidade do mundo pelo Espírito e pelo Reino de Deus. A Reforma protestante não foi só religiosa. Ela foi também política, econômica, social, intelectual etc. Müntzer e outros perceberam isso e aplicaram os princípios da Reforma protestante aos problemas sociais e econômicos dos camponeses. Quando Lutero percebeu este movimento social e como ele poderia ameaçar a Reforma e subverter os fundamentos da ordem governamental, não pensou duas vezes em fomentar, via panfleto, “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses” (1525), o uso da violência que acabou com a morte de 100 mil camponeses.

A Reforma protestante remete a um movimento dinâmico, complexo e diverso que abrange anseios por mudança. A sua natureza contestadora provoca a desinstalação dos sujeitos, sejam religiosos ou não. A fé reformada que almeja ter o que dizer aos dilemas do mundo atual é interpelada a se desinstalar dos seus próprios ambientes, trilhar novos caminhos e ampliar o seu horizonte de percepção por meio do contato com outras realidades. Nesse nosso tempo, marcado por agudos problemas, sinais de esperança e profundas contradições, a busca pelo legado da Reforma se intensifica e percorre caminhos múltiplos. Nesta caminhada, novos lugares de enunciação emergem interpelando a fé cristã a proferir a sua própria palavra de modo novo e libertador.

Soli Deo gloria

* Evangélico, protestante-contestador e professor colaborador no PPG em Teologia da FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

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