sábado, 7 de outubro de 2017

Explicando o filme 'Mãe!'

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Caso não tenha entendido o filme 'Mãe!', aqui segue uma explicação.
Mãe! é um filme extremamente religioso, ecológico e nietzschiano.
Mãe! é um filme extremamente religioso, ecológico e nietzschiano.
 (Divulgação/ Paramount Pictures)
Por Gilmar Pereira

Caso você não tenha assistido ao filme Mãe! (Mother!), de Darren Aronofsky, não continue este texto. Pare por aqui e retome após a próxima sessão na sala de cinema mais perto de você. Odiado e amado, o longa tem dividido a opinião da crítica e do público. Muita gente não conseguiu alcançar suas metáforas. Parece necessário retomar algumas cenas do filme e lançar um olhar para os seus possíveis significados.

Mãe! é um filme extremamente religioso, ecológico e nietzschiano. Sua cena inicial é a de uma casa queimada que se recompõe, inclusive com a presença da mãe, interpretada por Jennifer Lawrence. Ela não recebe nome no filme. Aliás, nem ela, nem personagem algum. Isso já alude que cada um ali é ele mesmo, como personagem de uma narrativa, mas também não é si mesmo, mas refere-se à outra coisa, o que faz com que cada um seja símbolo. Evoca-se na primeira cena a ideia da Mãe Terra, nossa Casa comum. Do fogo, do caos primordial, ergue-se a casa, surge a mãe.

Logo ao acordar, ela se vira para o outro lado da cama em busca do seu amado, algo muito parecido com o Cântico dos Cânticos de Salomão ou com o Cântico Espiritual de João da Cruz. Entretanto, a busca da mulher por seu esposo ganha, cinematograficamente, ares terrificantes. Aliás, o filme está classificado como drama, horror e mistério. Aqui começa a implicação da camada nietzschiana com a religiosa. A história que será contada é a do Ciclo do Mundo, que talvez possa ser lida também como uma dramática, horripilante e misteriosa história.

O Ciclo Cósmico é uma doutrina antiga que se encontrava no orfismo, entre os pitagóricos, estoicos, em Anaximandro, Empédocles e Heráclito. Ao observarem os ciclos da natureza, criam que o universo também seria cíclico, retornando ao caos primitivo para recomeçar seu curso de igual modo. O mundo se consumaria em fogo para, queimado, reconstruir-se novamente. Essa teoria foi retomada por Nietzsche no conceito, não acabado, de Eterno Retorno. Ele também observava que a História se repetia, em suas guerras, epidemias, revoluções, descobertas, etc. O filósofo chegou a colocar a questão de qual seria a reação de cada um se tudo se repetisse tal e qual, como uma ampulheta que, depois de esgotada, fosse virada novamente. Você consideraria isso uma condenação ou uma benção, repetir a própria vida do mesmo modo que a viveu?

Na busca pelo amado, a mãe olha da soleira da porta. O mato é alto ao redor, como um lugar não visitado. A sensação de estarmos sós é desoladora. Parece que Deus se esconde. Mas é o amado quem encontra sua esposa. O personagem interpretado por Javier Bardem é Deus. Isso fica evidente no final do filme quando a mulher lhe questiona sobre sua pessoa e ele responde: “Eu sou quem sou”, como Deus a Moisés na sarça ardente. O marido é um poeta em processo criativo. Aparentemente, ele não consegue criar mais, parece infértil. Inclusive, o casal não tem filhos e ela parece não ter sido realmente desposada. O amor do poeta por aquela que ainda não é mãe é sempre furtivo.

Como poeta de sucesso, o artista conseguiu tudo que possui por sua palavra, mas foi a mulher quem reergueu a casa que havia sido queimada. A palavra é tema forte no filme, tanto para descrever os processos de criação artísticos humanos como divinos. No momento que a mulher reclama o amor do marido e que ela se revela devastada, ele a ama. Nessa hora ela se reconhece fecundada e, por isso, a inspiração volta ao marido que escreve um poema definitivo. O filho inspira a poesia. Ou melhor, o filho é a própria palavra do poeta feito carne. Et Verbum caro factum est, mas isso já é no clímax do filme. Antes disso a história se desenrola.

Os conflitos começam logo no início quando a paz do casal é perturbada pela visita de um fã, alguém que vive pela palavra do poeta e a quem este passa se dedicar. Esse fã é o primeiro homem, Adão. Logo chegará sua mulher, uma espécie de Eva e Lilith. Segundo alguma tradição, Lilith foi a primeira mulher de Adão, que teria renegado os projetos divinos e se tornardo uma mulher demônio. Ela é quem teria seduzido Eva na figura da Serpente. E a atriz Michelle Pfeiffer interpreta com maestria essa sensualidade, ambiguidade, maternidade e fascínio da mulher.  É ela que introduz o marido no escritório do poeta e lhe entrega um misterioso cristal, que sobrara do primeiro incêndio, e o qual ninguém deveria tocar. O cristal se quebra e com isso vem a expulsão do casal daquele espaço e o seu trancamento pelo poeta. Trata-se do fruto do conhecimento do bem e do mal e da privação do paraíso.

O poeta não deixa de amar seus hóspedes, o que angustia sua esposa, que se sente abandonada. Nessa história chegam seus filhos, numa releitura de Caim e Abel, que brigam pelo amor do pai. Como no Gênesis, um mata o outro, que se torna um errante e carrega uma marca na fronte, sinal de seu crime. O velório acontece na casa, que recebe toda sorte de gente e passa a tratar a casa e a mulher com desdém. A invasão daquelas pessoas e o desrespeito pela mulher chegam ao ápice quando duas pessoas sentam numa pia ainda não firmada e fazem estourar o encanamento. As águas que jorram por todo lado representam o dilúvio, fim de um ciclo no filme e na história da humanidade. A figura da pia também é interessante, porque o cristianismo, realizando batismos em uma pia batismal, via nela um símbolo também do dilúvio e entendia que, pelas águas, a humanidade se renovou e, no batismo, mergulhados em Cristo, também seriam renovados.

Depois do dilúvio a terra fica vazia e é nesse momento que mãe engravida e a casa se recupera. Mas, quando o poema derradeiro é publicado, pessoas de todos os lugares, como os Magos do Oriente, vêm prestar-lhe homenagem. E cada qual que o leu recebeu ao seu modo. Aí começa o trecho mais insano do filme. A palavra do criador é recebida de distintos modos e as pessoas começam a depredar a casa em busca de algo do poeta, como um caçador de relíquias faz com o que pertencera a um santo. A mesma palavra que inspira e consola, mal recebida, provoca destruição, conflito, guerra e morte. E é isso que acontece no filme. A casa se torna até cenário de guerra, aludindo a todos os conflitos históricos do mundo. Nisso é emblemática a figura da editora, aquela que administra a publicação da palavra do poeta. Ela é figura dos líderes religiosos que, num momento, exaltam a palavra e sua inspiração e, em outro, matam.

Em meio ao caos do mundo nasce a criança e o silêncio impera. Tudo para. Vemos a figura plena da Mãe, tal qual Maria com a criança ao colo. Eis o filho da terra e do poeta, imagem do Filho do Homem e Filho de Deus. O pai dá o filho aos fãs, atendendo ao seu desejo de tocá-lo, pois o buscam para ter vida. E eles o matam e em seguida comem sua carne, signo profundamente Eucarístico. Sente-se o caos, o desespero do mundo. Tudo é marcado pelo encontro e desencontro entre o poeta e a mãe. Ela o acusa de egoísmo, de querer ser apenas amado, de não amar. Ele não nega, nem endossa. Tratado nos créditos apenas como “Ele”, o poeta é um eterno estranho que, apesar de tudo, pede que a amada ainda se doe mais.

Há muito que dizer sobre o filme e seus detalhes, como o lado aberto de Adão, de onde se extrai a costela, ou mesmo o coração que é dado como oblação de amor, condição para a ressurreição. Das suas múltiplas camadas podem-se extrair diversos sentidos, até dos momentos de nonsense. Em Mãe! estão os processos criativos e as dinâmicas de recepção, está a história do mundo e das religiões. Residem perspectivas judaico-cristãs e niilistas, mas também ecológicas que provocam sobre o cuidado da Terra. Sobretudo, fica de Mãe! o mal-estar pela ausência de Deus, experimentada pelo místico e pelo ateu, mas não sentida por aqueles que estão naquilo que Sartre chamou de má fé. Fica também a desesperança pela humanidade, o desespero humano e ainda a esperança de renovação.


Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF e em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas". Escreve às sextas-feiras.

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