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Pessoas atacam na internet textos, que às vezes nem leram, apenas pelo fato de ali constar uma crítica
Uma religiosidade que fecha os olhos para os próprios limites da religião é idolátrica. (Reprodução/ Pixabay)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Comentários às publicações, sem que as pessoas tenham lido os artigos, matérias e reportagens são bastante comuns, na internet. Pelo título, ou apenas pela chamada, surge uma enxurrada de comentários atacando não só o autor do texto, bem como o portal que o publica. Acompanhando os comentários às publicações semanais, que temos feito há mais de um ano neste espaço, é impressionante como a velocidade no juízo das pessoas se dá: a grande maioria sequer clicou no link que dá acesso ao artigo, pode-se perceber pelo conteúdo dos comentários. Na última semana, resolvi fazer uma experiência: responder aos comentadores que me condenaram ao inferno, recomendando-lhes que lessem o texto. Tanto a agressividade nos comentários, quanto a sinceridade no reconhecimento da não leitura são impressionantes.
Entre os que leem, fora os que não têm as ferramentas básicas para a interpretação de um texto, estão também aqueles que, de pronto, negam o seu conteúdo, apenas pelo fato de nele estar constada uma crítica à tradição religiosa à qual o leitor pertence – que, mais das vezes, é a mesma tradição do autor, dado que, aqui, tratamos a respeito do cristianismo e de temas a ele vinculados. Não se pretende, contudo, uma unanimidade na concordância dos temas tratados: o discurso único, escrevemos várias vezes, é autoritário e não nos cabe. A pluralidade de ideias é uma riqueza que só tende a enobrecer o debate e a compreensão da vida e, em nosso caso, da religião. Mas essa pluralidade pressupõe abertura, não só na recepção de voz e do olhar dos outros, mas, também, abertura para criticar as próprias convicções que não são absolutas. Negar, sem mais, uma crítica só pelo fato de ser uma crítica, encerra o debate e a possibilidade de crescimento mútuo.
Fazendo dessa situação, ao longo dessa semana, oração, um texto do Evangelho de João ficou ecoando. Trata-se, sobretudo, do versículo que escolhemos para título desse artigo. O contexto do versículo (6,60) é toda a elaboração joanina do tema do Pão: Jesus é aquele que se apresenta como o Pão da Vida, do qual quem come não tem mais fome. Significa, entre outras coisas, um chamado à comunhão existencial com aquele que revela o Rosto do Pai. O capítulo 6 do Evangelho de João marca uma crise na missão de Cristo: tendo realizado o sinal da multiplicação dos pães e dos peixes, a multidão passa a assediar Jesus, buscando, além de mais pães, outros sinais, para que pudessem crer nele. Para a multidão, os sinais que Jesus realizava, e que deveria continuar realizando, serviriam de prova de sua fidedignidade. Os sinais seriam, então, critério para a fé do povo.
Diante disso, Jesus fala à multidão a respeito da exigência da fé, para a salvação. É preciso crer nele, para que o acesso ao Pai seja possível. E isso Jesus falava, usando da metáfora do pão – já que era atrás disso que as pessoas estavam –, da sua própria carne e de seu sangue, para chamar o povo à fé, que se daria na comunhão de vida entre aquele que viu e que veio do Pai, e aqueles com quem o Pai deseja nutrir estreita relação filial. Muitos discípulos, diz o texto bíblico, começaram a questionar quem seria capaz de ouvir palavra tão dura, quanto aquela que Jesus falava, que nada mais era que convite à fé e à comunhão. Muitos discípulos abandonaram o seguimento de Jesus.
A crise que essa narrativa retrata, na missão de Jesus, é a que surge de uma fé que está pautada nas benesses que ele poderia trazer ao povo, mas que não estava aberta ao comprometimento com o seguimento e o engajamento de vida pela mesma causa. Não é muito diferente do que podemos ver, em muitos shows religiosos que se espalham por todos os cantos: em busca de sinais e milagres, que mais das vezes não conduzem à fé, espaços religiosos ficam tumultuados; no desdobramento ético, como exigência da própria fé, o vazio, o silêncio... o abandono.
Uma religiosidade que não se critica, tal como a de muitas pessoas que rechaçam quaisquer visões críticas a respeito de suas religiões e crenças, assemelha-se àquela religiosidade dos que abandonaram a Jesus, ao se darem conta de que o que ele pregava era um Reino que tinha suas exigências. Além disso, uma religiosidade assim, que fecha os olhos para os próprios limites da religião, é idolátrica, porque absolutiza um modo de manifestar e de compreender a fé, negando outros olhares, outras perspectivas e outras compreensões. É preciso dar razões da própria esperança, ensina-nos a Primeira Carta de Pedro (3,15). Para isso, é preciso também aprender a olhar, criticamente, para os próprios limites das estruturas religiosas às quais estamos ligados.
Nossa pertença às tradições religiosas pressupõe amadurecimento da fé, o que necessita de um processo contínuo. Ninguém está pronto: todas as pessoas precisam assumir um caminho de qualificação da experiência de fé, bem como da elaboração que se faz dessa experiência. Só assim é possível a fidelidade ao seguimento, no caso dos cristãos, de Jesus Cristo. Esse seguimento é exigente, mas a palavra de Jesus não é dura para quem se deixa por ela transformar, para quem nela encontra sentido. Esse sentido, para ser acolhido, pressupõe uma visão crítica, reflexiva, não fechada em si mesma. Dura não é a palavra de Jesus, e seu convite ao comprometimento com a causa pela qual ele deu a vida. Duros são os corações de quem, adoecidos por essa esclerocardia de uma religião cristalizada, não se deixam interpelar.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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