quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Valha-me, Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré, intercessora dos pobres!

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Maria é uma referência para os anseios de igualdade e justiça.
A Compadecida não ocupa o lugar do Manuel, apenas advoga.
A Compadecida não ocupa o lugar do Manuel, apenas advoga. (Divulgação/ Globo Filmes)
Por Élio Gasda*

O relato é conhecido: a jovem conceberá e dará à luz a um menino que se chamará Emanuel, que signifi­ca: Deus-conosco (Mt 1,23). Maria é “Mãe de Deus” porque d’Ela nasceu o Verbo segundo a carne. “Ninguém pode dizer algo de maior sobre Ela. É preciso meditar sobre o que signifi­ca ser Mãe de Deus” (Lutero). A primeira habitação de Jesus não foi uma manjedoura, mas o ventre desta jovem. O habitar do Espírito é tão íntimo que elevou uma mulher à altura da divindade.

O povo brasileiro é majoritariamente pobre e profundamente devoto de Maria. A genialidade de Ariano Suassuna traduz essa realidade. Quem não se lembra da invocação de João Grilo, no Auto da Compadecida? “Valha-me nossa Senhora”! “Lá vem a compadecida”, lamentava o Encourado. Quem não se lembra da Compadecida de todas as misérias humanas, de seu olhar feminino sobre aqueles pobres desesperados ameaçados pelo chifrudo? Compadecida é o outro nome da Misericórdia (éleos, em grego). Deixar-se contagiar pelo sofrimento do outro é qualidade humana e divina.

Não existe contradição entre justiça e misericórdia. A Compadecida não ocupa o lugar do Manuel, apenas advoga: “Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles”. João Grilo recorre à Maria por ela estar “mais perto de nós, por (ser) gente que é gente mesmo. Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa”. Manuel reage: “E eu não sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém, criado em Nazaré, fui ajudante de carpinteiro... Tudo isso vale alguma coisa”. João retruca: “O Senhor é gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande”.

João não se entrega: “Difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito por quê?” O pobre sempre dá um “jeitinho” para sobreviver. “Jeito” é técnica de sobrevivência diante de instituições Encouradas, diabólicas, ocupadas em fazer da vida dos pobres um inferno. A figura do Encourado faz o papel de “promotor de justiça”, acusador grotesco, um misto de “promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia”.

Deus encarnado na negritude, Manuel (Deus conosco) coroado de espinhos e sua Mãe conhecem muito bem a realidade dos pobres e sabe de suas lutas frente às forças do mal: “João foi um pobre como nós (...). Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa”, alega a Compadecida em defesa de João Grilo. “São tão grandes os pobres na presença de Deus que, principalmente, para eles foi enviado Jesus Cristo à terra” (Inácio de Loyola).

Como “mulher da encarnação”, Maria afasta a ideia de uma religião alienada e individualista. A Mãe de Deus não é uma expectadora inofensiva. No Magnificat (Lc 1,46-55), ela exalta a justiça de Deus para os humilhados, os famintos, os tristes. Seu cântico mostra que o nascimento de Jesus é Boa-Notícia para os pobres e uma ameaça para os poderosos. Ela se coloca ao lado daqueles cuja dignidade foi tirada. Seu canto expressa a vontade de Deus. De protesto e esperança, o Magnificat é o espelho da alma de alguém que não aceita a realidade passivamente, não é alienado.

Maria não se deixou enquadrar. A devoção mariana deveria ser uma atitude subversiva e rebelde, sempre firme em defesa dos milhões de João Grilos ameaçados pelos Encourados a serviço das forças infernais. Milhões de brasileiros estão condenados a viver apelando à misericórdia divina. São clamores que exigem a resposta de Marias subversivas, rebeldes e corajosas. Maria é uma referência para os anseios de igualdade e justiça. “Ensina o povo a não calar a voz. Desperta o coração de quem não acordou. Ensina que a justiça é condição de construir um mundo mais irmão” (Pe. Zezinho).

 Para Jesus, “Mãe” era quem ouvia sua palavra e a praticava (Lc 8,21; 11,27-28). Por isso, Maria “concebeu antes na mente e depois no ventre” (São Leão Magno). Ela é mais feliz por ter sido discípula do que mãe carnal do Senhor (Santo Agostinho). Contra as forças da morte, contra o silêncio dos covardes, é preciso resistir sem temer. Que o natal nos faça mais marianos, humanos e divinos: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). Feliz Natal!

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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