quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Cony seguirá maior do que essas "pequenices".

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Bendito sempre os frutos do ventre literário de Carlos Heitor Cony.
Bendito sempre os frutos do ventre literário de Carlos Heitor Cony. (Reprodução)
Por Ricardo Soares*

No Brasil a  literatura sempre esteve em desuso embora os escritores se enganem e achem que não. A frase me chega após concluir a leitura de "O Ventre", o primeiro romance de Carlos Heitor Cony, publicado em 1958.  Não tivesse a literatura em eterno desuso entre nós esse livro seria sempre lembrado, dissecado, adotado. Mas aqui , quando há espaço para o assunto é para falar dos lançamentos da semana das grandes editoras. E olhe lá.

Antes que eu derive pra chorumela devo dizer que essas mal traçadas pretendem ainda evocar o Cony depois de tanta gente ter escrito sobre ele, ter se feito amiga dele, ter insinuado intimidade  mesmo que nunca tenha lido uma linha do Cony escritor ou do Cony jornalista. Isso sem falar de gente que tentou desqualificá-lo como autor  por suas posições conservadoras ou mesmo por ter apoiado o golpe de 64 e depois ter se voltado contra. Cony seguirá maior do que essas "pequenices".

Se digo que seguirá maior é porque se já o tinha em alta conta como autor agora me quedo estupefato após a sôfrega leitura de "O Ventre" um romance de um autor jovem que escreveu a sua prosa como um autor experiente. É um livro magistral. Magistralmente contundente, cru, belo , pessimista. Eivado de frases e pensatas que são verdadeiros murros em nossos ventres. Revolvem as nossas vísceras como " mais cedo ou mais tarde, a vida atinge aquele ponto em que só o chão importa. Tudo então fica sendo chão.Tudo termina no chão. A semente e o cadáver".

No momento em que escrevo tenho ao lado direito do computador 8 dos livros do Cony, quatro autografados, resultado de encontros profissionais ao longo da vida que sempre resultaram em papos informais como se entrevistas não fossem. Não importava se a conversa era para rádio, revista, jornal ou televisão sempre era uma boa prosa e com isso não quero sugerir intimidade com o Cony muito embora ele me chamasse sempre de OJ Simpson por uma vaga semelhança que ele via entre esse que vos escreve e o astro do beisebol americano.

Vi de perto o Cony há muitos anos, nos meus verdes anos profissionais quando vagava na redação da Bloch Editores e da revista Manchete lá no aterro do Flamengo no Rio. Nutria por ele uma incondicional admiração profissional partilhada com meu amigo Walterson Sardenberg Sobrinho que segue vivo e bem disposto a nos brindar com textos saborosos em épocas tão áridas.

Uma dessas primeiras vezes em que vi Cony ele estava ao lado de Adolpho Bloch batucando ferozmente numa máquina de escrever um texto que Bloch recitava e ele adaptava. Como muitos sabem Cony era o ghost writer de Adolpho. Ao lado deles estava apoiada numa mesinha uma enorme bandeja de  jabuticabas que Bloch oferecia a alguns dos que passavam perto. Não fui agraciado com o convite mas a cena me ficou na memória talvez porque representasse- sem que eu soubesse- uma simbiose entre o editor e seu "ghost".

As dezenas de historias ao redor de Cony, transformadas ou não em lendas urbanas cariocas, já foram lembradas em prosa e verso logo após sua morte. Muitas pura invenção. Outras verdadeira ação. Cony , como todo grande autor, não era uma unanimidade. E se escrevo tudo isso é pra lhe louvar o talento e me confessar um ignorante. Mesmo tendo lido vários dos seus livros -de ficção e não ficção- não conhecia até agora "O Ventre" um livro fundamental na bibliografia dele. Se tivesse escrito só esse livro Cony já figuraria entre os grandes. A admiração que eu já lhe devotava tornou-se maior e tão óbvia que só posso encerrar com um chavão de gosto duvidoso. Bendito sempre os frutos do ventre literário de Carlos Heitor Cony.

* Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 8 livros, o mais recente "Amor de mãe" pela editora Patuá

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