domtotal.com
A noite está tão escura que só o farol muito alto pode revelar as nuvens de areia que batem no carro.
É um sono quase inocente porque livre de sustos e sobressaltos. (Reprodução)
Por Ricardo Soares*
A bituca foi jogada pela janela do carro e pelo retrovisor ele ficou olhando de longe a brasa se espatifar no asfalto. Ao seu lado ela dormia com a cabeça dobrada à direita , short cavado revelando as pernas lindas e encolhidas. Como é bom que ela seja pequena e sua voz tão rouca se entremeie de suspiros e sussurros sempre dados na hora certa.
Há uma longa estrada pela frente . A noite está tão escura que só o farol muito alto pode revelar as nuvens de areia que batem no carro trazidas pela praia vazia que está a esquerda. O volume do som do carro é exagerado o que afasta o barulho das ondas que arrebentam contra as pedras. Animais marinhos morrem lá fora trazidos pela maré má que um dia há de provocar boas lembranças nestes dois amantes que cortam a noite nesta longa estrada.
Sim, quem sabe seja um blues que toque dentro do carro enquanto ela dorme um sono quase inocente. Não é de todo inocente porque anjos viris povoam seus sonhos. Perseguem mulheres gordas, grandes e úmidas. É um sono quase inocente porque livre de sustos e sobressaltos. Ela dorme com a cabeça que pende para a direita e talvez um blues do lado de fora de seu sono não lhe incomode as fantasias.
Agora não há gestos lentos ou pesados. Ela dorme e ele tem as mãos fixas no volante, olhar para a frente levemente desviado vez por outra para apreciar aquelas lindas pernas que ele adora tocar. As mãos deslizam sobre elas num contato tão íntimo e próximo que parecem as mãos terem sido feitas para aquelas pernas de pelinhos tão dourados.
Ao ver este sono, esta estrada e os coqueiros que balançam no acostamento a vida invade as narinas e parece improvável que esta mulher pequena tenha tido um dia vontade de pular de um viaduto. Parece improvável que ela ame tanto roer as unhas e se pareça tão disponível quando cruza as pernas ou fale com os homens segurando-os nos ombros. Parece improvável que ela ranja os dentes quando dorme – não agora - e tenha ciúmes. Parece improvável que ela seja dele por meia dúzia de horas ou dias. Parece improvável que adore falar de amor em espanhol e que tenha quedas por ouvir tangos argentinos quando várias doses de uísque não lhe aplacam a libido.
Vasta é a estrada, vastos os beijos que se deram.. Suspiros de estupefação por se parecerem tanto um com o outro apesar de pouco se conhecerem . Velhos namorados que se conhecem há poucos dias. Pombos tronchos, arraias miúdas que se tocam e saem correndo, enguias que trocam choques e olhares repletos de luz.
Ele na verdade está dependente da luz que dela sai . Fragmento de luz azulada, pendendo para o violeta, aura estranha que nunca enxergou antes. Já ela, miúda, exagera nas cores. Ela o vê vermelho, vivo , magnífico . Um vermelho que seria bom de tingir camisas de algodão ou lençóis que sobreviveram amarfalhados.
A luz do farol do carro brilha no olho de um jegue. Olho enorme ele fita sua própria burrice interior esquecido das cargas que puxou . Um jegue perigoso solto no acostamento compondo um cenário irreal de um road movie que jamais será rodado. Na verdade a cena de cinema é aqui que se faz. Dentro desse carro que come a estrada sem faixas ou sinalização enquanto a música alta - um blues? - nem de longe perturba o sono da pequena. Quisera agora ele ter o dedo mágico de um fotógrafo hábil para captar este fragmento da existência. Quisera saber a hora certa de tocar o obturador e poder guardar para sempre ela dormindo no banco ao lado, o jegue que passou , a luz azulada que dela se desprende, o vento que joga areia no carro, a música alta que entra pelos ouvidos mas ele não registra.
Ela dorme e ele dirige. Mas estão tão seguros de si mesmos que formaram um escudo poderoso contra os olhares gulosos dos estranhos que os enxergam juntos caminhando de mãos dadas pela praia. Lindos ou serenos ? excitados ou morenos ? por que afinal provocam olhares tão invasivos se ainda há duas semanas atrás o que queriam era justamente passarem desapercebidos ?
Ela morde o travesseiro e ele baba na fronha. Olham para o ventilador do teto e imaginam a hélice de um grande navio que parte , sempre parte, deixando-os sós , cada qual no seu porto. Ela não acena com lenço algum e ele não olha para trás. Preferem lembrar do saquê que beberam juntos, dos tombos que juntos levaram e dos riscos que justos correram. E se não é amor o que ele sente quando a vê dormir ao seu lado no banco do carro o que será esta sensação de ovo que sai pela boca ?
Estrada comida pelas rodas, luz azulada que dela sai, resíduos de areia nos ouvidos e no calção, resta a ele acender um cigarro e lhe assobiar uma velha canção. Uma tão velha e secreta canção que apesar de por ele ser assobiada continuará secreta pois ela mexe as pernas lindas, suspira e não escuta pois continuará dormindo enquanto a areia bater no carro e o carro assim deslizando for indo, for indo, for indo ...
* Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Dirigiu 12 documentários, publicou 8 livros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário