terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O quinto mandamento e o primeiro episódio

domtotal.com
Em uma situação extrema, seríamos capazes de optar pela ética?
O artigo de hoje comenta a espetacular série Retribution, disponível no Netflix desde 30 de janeiro. É necessário avisar que contém spoilers (poucos e comedidos), mas apenas do primeiro episódio. Como no total são quatro, não me parece que a leitura do que segue abaixo vá estragar tanto as muitas e gratas surpresas que o programa promete.
Retribution: mistério e assassinato na nova série do Netflix.
Retribution: mistério e assassinato na nova série do Netflix. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*

Na noite de Natal de 2014 o ator e diretor Roberto Begnini (de A Vida é Bela) protagonizou um espetáculo de qualidades raras na televisão italiana. Sozinho no palco e de cara limpa, interpretou um monólogo em que apresentava de maneira única os Dez Mandamentos.

Naquela ocasião, assisti a um trecho por acaso durante a madrugada pós-ceia, transmitido pelo canal internacional da RAI, a TV público-estatal da Itália.

Ficou clara na minha memória, porém, a substância de que tratava o programa: uma leitura pessoal das tábuas de leis de Moisés. Política sim, mas não ideológica; sem nenhum laivo de proselitismo, da religião foi preservada apenas a sua fonte histórica (que é tanto a Bíblia quanto a Torá).

A récita, de mais de duas horas e meia de duração e dividida em duas partes, foi um enorme sucesso de audiência, assistida por nada menos que dez milhões de italianos. Na semana seguinte à sua exibição, Benigni foi convidado para ir conhecer um telespectador muito especial. Apesar das críticas à visão nem sempre progressista da Igreja, o Papa Francisco encantou-se com o que havia sido apresentado e quis elogiar pessoalmente o artista.

Recentemente, após um serviço meticuloso de arqueologia televisiva na internet, pude degustar (e não há termo melhor para descrever a experiência) a íntegra da atração. Ao assistir ao primeiro episódio de Retribution (uma produção original da BBC), me lembrei imediatamente do autor de O Monstro e O Pequeno Diabo e do que ele disse sobre o assassinato.

"Não matarás" é a quinta lei, o coração do decálogo e, para Benigni, o mandamento por excelência. Para ele é assustador que, até Moisés trazer o assunto à tona, ninguém tenha pensado nisso antes. Mas aí ele se recorda como era o mundo de então e que a raça humana foi inaugurada por um homicídio. E conclui: Caim só matou Abel porque não se falavam - e olha que naquela época nem tinha tanta gente circulando para se trocar uma ideia. Ainda assim, preferiram calar (e deu no que deu).

É a falta da palavra, de conversa, de entendimento a fonte de toda violência. Por continuarmos ignorando esta asserção, seguimos matando até hoje - e cada vez mais. O século passado, com suas inúmeras guerras globais, foi o mais sangrento de todos.

Sabendo que a vida de um só homem equivale à vida de toda a obra da criação, ao final, somos convocados por Benigni para uma renovação do mandamento: de "Não Matarás" para "Não matarás mais".

E aí chego a Retribution.

A sinopse, em poucas linhas: dois jovens recém-casados são assassinados e aquele que parece ser o assassino, um sem-teto viciado, rouba um carro e se dirige para o interior, onde moram as famílias dos mortos, em duas fazendas vizinhas. Sob forte chuva, o carro capota e o suposto criminoso é resgatado com muitos ferimentos por pais e irmãos do casal, ainda em choque com a notícia do duplo homicídio.

Ao descobrirem de quem se trata, os até então pacatos fazendeiros o trancam em um canil no estábulo de uma das fazendas para esperar a tempestade passar, quando polícia e socorro médico devem vir.

(Junte a isso tudo a história de uma outra personagem, sem ligação aparente ainda com as duas famílias, envolvida em uma transação de tráfico de LSD para conseguir o dinheiro que pagará pela operação que pode salvar a vida da filha.) 

Na manhã seguinte, é revelado que o suspeito foi morto durante a madrugada e que nem polícia e nem ambulância irão aparecer.

Uma daquelas pessoas é o assassino.

Aí sim a história de Retribution começa. Acusações são feitas dentro daquele grupo e a desconfiança se instala. O instinto de auto-preservação acaba por prevalecer no primeiro momento e surge a ideia (não consensual) de se esconder o corpo, uma vez que a polícia não saberia da presença daquele homem ali.

É nesta hora que nós, telespectadores, somos assombrados com o desvelar do real sentido da série, muito maior que apenas uma trama policial, onde normalmente ganha o jogo quem descobre primeiro se o mordomo foi ou não o culpado.

O que a série quer é promover uma discussão ética. E se fosse você passando por aquela situação? Como reagiria?  

O enredo se passa na Escócia, mas poderia estar acontecendo agora no interior de Minas Gerais ou na serra de Santa Catarina. E escolhe um homicídio para lançar a questão - porque aquele que não observa o comando de "Não Matarás" é responsável pelo crime mais vil, o mais incontornável de todos - para que a grandiloquência sustente com mais força o drama proposto.

Também não é coincidência que a história se desenvolva no seio familiar. O que mais une uma família não é o amor ou o sangue e sim os seus segredos. Um filho com problemas de cabeça, um pai ausente, uma mãe que não pode mais beber, uma outra mãe dona de rancores alimentados com devoção... Esta pequena mostra dada já no primeiro episódio nos faz ansiar para visitar a intimidade dos fazendeiros, com a certeza de que mais e mais virá à tona. E com implicações diretas no desenrolar da narrativa.

A verossimilhança só cresce graças ao estupendo elenco. (É inacreditável como são competentes os atores britânicos. A cada nova série passamos a conhecer novos rostos com enorme talento que se unem a outros velhos conhecidos. A maioria das séries policiais inglesas - e são incontáveis, eles adoram séries policiais - parece uma montagem impecável da Royal Shakespeare Company. Dessa vez, os destaques são o novato e iracundo filho mais velho - uma espécie de Gary Oldman na juventude - e o sempre admirável Gary Lewis, o pai de Billy Elliot no filme de 2000, em papel aparentemente coadjuvante.)

Calçarmos os sapatos destes personagens é um belo exercício de autoconhecimento. Em uma situação extrema, seríamos capazes de, ainda assim, optar pela ética? Porque, em última análise, ser ético significa sempre ter que abrir mão de alguma coisa. Tanto faz se grande ou pequena essa coisa; o que importa é o princípio.

Se pensarmos bem, e seguindo a pista dada por Benigni, tudo se resume a isso. Até o "Não matarás" é mais um posicionamento ético que religioso; sem lição de moral alguma envolvida e sem recompensa material.

Retribution é uma série que faz pensar e ótima oportunidade para por à prova a frase sempre repetida por um querido amigo, sua constatação desanimada de que "a humanidade é um projeto que, definitivamente, não deu certo". Será?

Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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