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Na baixa idade média, mulher não era o tal 'sexo frágil'.
A mulher não é um ser inferior ou superior ao homem. (Reuters)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Nesta semana, mais uma vez, Papa Francisco trouxe para o centro da sua pregação o tema da mulher, afirmando que é ela quem promove a “harmonia no mundo”. Combatendo estereótipos, o santo padre enfatizou que ela não foi feita simplesmente para “lavar pratos”, mas assume um papel importante, capaz de transcender até o seu próprio fazer. “Sem a mulher não há harmonia. Não são iguais - homem e mulher -, não são superiores um ao outro, não! É que o homem não traz a harmonia, é ela quem traz. E ela, que nos traz essa harmonia, nos ensina a acariciar, a amar com ternura e isso faz do mundo algo mais bonito”, disse.
Mas além da ternura e de tantos outros atributos inerentes à natureza da mulher, um pequeno resgate histórico nos fará notar uma grande promoção da identidade feminina na sombria idade média que, no imaginário popular, é tida como um período negativo em todos os seus processos. Porém, foi justamente em parte desse período não caracterizado por grandes invenções, mas por inovações de caráter técnico, que a tal “descendente de Eva” - pecaminosa e ocasião de pecado, características estas impregnadas posteriormente na mente do homem renascentista -, vem a ser considerada a “filha de Maria”, a mãe de Jesus: protagonista, forte e decidida. Não é à toa que justamente entre os séculos XI e XIII observa-se um crescimento do culto mariano, a propagação da devoção à Maria Madalena e uma infinidade de igrejas dedicadas a santas padroeiras.
Mas antes de pensarmos que essa valorização da mulher se detenha apenas a um impulso de caráter místico, elencamos alguns fatores que confirmam essa teoria sustentada por grandes historiadores medievalistas, como é o caso da francesa Reginé Pernoud. Muitas abadessas na baixa idade média eram senhoras feudais. Além disso, muitos mosteiros femininos eram centros renomados de cultura e o nível intelectual deles era igual àqueles masculinos. A abadessa francesa Herrad de Landsberg é aquela que mais representa esse florescer do gênero feminino no período. Ela foi autora do Hortus Deliciarum, um compêndio que reunia todas as ciências estudadas à época, o qual veio a ser considerado a “enciclopédia” mais importante da baixa idade média.
As mães de família, sobretudo entre a nobreza, eram letradas. Prova disso é que em muitas esculturas medievais vemos retratada a figura da mulher que se aplica ao ensinamento; as mulheres nobres podiam votar e participar das assembleias nas chamadas comunas - os centros urbanos em sua forma embrionária. Na França, em alguns manuscritos, vemos que algumas mulheres podiam abrir negócios sem a prévia permissão dos seus maridos. Em Paris, no século XIII, testemunha-se a presença de mulheres exercendo profissões concretas: médicas, farmacêuticas, mestres, etc. Para se ter uma ideia, nesse período - diferente do período anterior - a mulher só se casava dando seu consenso.
A reintrodução do direito romano com seu conceito de pater familias, no entardecer do período, sinaliza o fim dessa era de ouro para a mulher. O homem passa a assumir todas as competências na família e no ambiente social. Já no renascimento, portanto, a mulher vê-se eliminada de todo e qualquer protagonismo na vida pública.
A mulher da baixa idade média não tinha a necessidade de competir com o homem: ambos haviam seus respectivos papéis e eram valorizados como tal. O pensamento da Igreja em relação à mulher na era contemporânea, portanto, o qual é alargado firmemente por Papa Francisco, exprime a tentativa de resgatar algo que se perdeu: de que a mulher não é um ser inferior ou superior ao homem, mas uma protagonista na sociedade tanto quanto o homem que, por séculos, deteve injustamente esse título somente para si.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé
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