quinta-feira, 8 de março de 2018

Dia da Mulher sob a teoria crítica

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O Dia da Mulher é dia de reflexão sobre alternativas e reversão de padrões de dominação.
Ao reduzir a questão da desigualdade a uma abordagem de quem ocupa a posição privilegiada na sujeição do ser ao outro, está-se a ignorar o verdadeiro dilema.
Ao reduzir a questão da desigualdade a uma abordagem de quem ocupa a posição privilegiada na sujeição do ser ao outro, está-se a ignorar o verdadeiro dilema. (Leo Correa/AFP)
Por Marcelo Kokke*

A tarefa de escrever sobre o Dia da Mulher é complexa, principalmente quando o texto é escrito por um homem, sobretudo em um ambiente de fragmentação social e desvirtuamento do sentido de usurpação de lutas sociais por reconhecimento. Mais complexo ainda quando se busca um texto não de enaltecimento, mas voltado para a teoria crítica, voltado para a articulação de padrões de dominação e que visa uma pauta de emancipação social.

O problema ainda se manifesta na medida em que se vive uma era de simplificação, cega a grilhões que prendem o ser humano, e exaltada por modismos. Talvez um dos maiores descompassos do Dia da Mulher seja a desproporção de quantos falam de feminismo em relação a quantos já leram realmente algo de subsistente sobre o tema. Ou então, ter como desconhecido que há diversos tipos e vertentes de feminismo.

Mas há algo de pior. Algo de inarticulado. Um grilhão de dominação que fica às escuras. Não é possível discutir o Dia da Mulher sem questionar a matriz de dominação patriarcal que envolve a sociedade. Discutir o número de mulheres em determinados cargos, ou sua remuneração, não é discutir o padrão de dominação, que envolve homens e mulheres. Claro que são discussões relevantes, mas são discussões de sintomas e não da matriz dos problemas.

A forma como o Dia da Mulher é apresentado e “comemorado” reforça, ao invés de combater, padrões do patriarcado. Não basta colocar em crítica posições de homens ou mulheres na sociedade, seja na esfera privada, seja na pública. É preciso dimensionar em crítica as relações de poder e dominação que absorvem e geram seres humanos que simplesmente continuam a girar uma roda em que o outro se torna um instrumento de sujeição.

A abordagem crítica se faz extremamente relevante quando se toma em enfoque a obra feminista de Carol Gilligan e a obra de psicologia social de Simon Baron-Cohen. Inicio pela primeira. A pergunta primordial que se faz é porque e como as pessoas param de cuidas umas das outras? Como perdemos na sociedade a aptidão de abrirmos mão de nosso interesse egoístico e nos conduzirmos pela sensibilidade em prol do auxílio ao outro? Como o sistema arregimenta suas bases reprodutivas?

O modelo de sociedade patriarcal atua nessa perda, constrói essa perda, provoca a chamada atomização. O ser como um átomo. A modelagem econômico-social forjou seres que são átomos. E como o mercado foi tomado primeiro pelos homens, eles se tornaram os primeiros átomos. O modelo de sucesso na sociedade é do indivíduo que supera o outro, precificado em seu valor econômico, frio, arredio à sensibilidade, dotado de uma razão que separa o corpo da mente, o ser do outro, o indivíduo da sociedade. Enquanto o padrão de ação materno é orientado e identificado para o perdão, para a sensibilidade, para o cuidar do outro, o padrão de ação paterno é o da distância, do átomo. Pensar na família clássica, na imagem da “nonna” italiana, como a avó que reúne a família, muito revela.

O padrão patriarcal proporciona a redução da empatia, gera uma redução do outro em patamar de objeto, em reificação, transforma as relações de compromisso comunitário em performance de comando e obediência. A mulher, as minorias, os excluídos estão aqui sujeitados, postos em um padrão de reificação. Como aduz Baron-Cohen, a empatia proporciona a superação de um foco unilateral para uma abordagem recíproca, cooperativa. Sua ausência reduz o outro a algo indiferente, ou mesmo a simples coisa no ambiente em que se vive.

A crítica desponta. Ao invés de colocar em crítica relações de sujeição em suas mais amplas medidas, ao invés de colocar em crítica como o sistema patriarcal produz o déficit de empatia e nos faz parar de cuidar uns dos outros no processo de socialização, o sistema se reproduz e pulveriza a ótica do átomo, busca cooptar. Ao invés de questionar padrões de dominação, a questão é levantada como sendo a possibilidade do padrão de dominação ser exercido por ambos os sexos.

A emancipação efetiva que representa o Dia da Mulher há de focar como reverter o processo que produz homens como átomos, como reverter o processo de perda da potencialidade de empatia, e não enaltecer a construção da atomização da mulher e seu desvincular para com o outro. O modelo patriarcal está a levar ao esgotamento do meio ambiente e a níveis de processos institucionalizados de crueldade jamais vistos.

O Dia da Mulher é um dia de reflexão sobre alternativas e reversão de padrões de dominação. Ao reduzir a questão da desigualdade a uma abordagem de quem ocupa a posição privilegiada na sujeição do ser ao outro, está-se a ignorar o verdadeiro dilema. Como superar o patriarcado sem se deixar absorver por ele? Como romper estereótipos identificados em escala microsocial que estão imersos em estereótipos mais abrangentes e corrosivos? Como diferenciar discursos críticos de expressões de intolerância presentes em debates sociais?

O Dia das Mulheres não pode se dobrar ou ser cooptado para assimilar o modelo hierárquico contra democrático de uma sociedade de indiferença para com o outro. Assim como não pode se converter à tentação da intolerância. Combater o patriarcalismo não é antes de tudo um desafio democrático.

*Marcelo Kokke é procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito Constitucional da Dom Helder Escola de Direito, mestre e doutor em Direito, especialista em Processo Constitucional, membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB), pós-doutorando em Direito Público pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha).

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