sexta-feira, 2 de março de 2018

No cinema, na vida, na relação com Deus, as mulheres precisam falar de si

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Como nas histórias dos filmes, mulheres da vida real não são mocinhas perfeitas, cada uma de nós carrega as lágrimas e os sorrisos de histórias que precisam ser contadas.
Sabemos que um grande número de mulheres vem de uma família em que a violência é uma marca desde a mais tenra infância.
Sabemos que um grande número de mulheres vem de uma família em que a violência é uma marca desde a mais tenra infância. (Reprodução/ Copyright 2017 Twentieth Century Fox)
Por Simone Ramos*

Uma boa busca na internet dá conta de dizer como anda a realidade da mulher no que se refere aos problemas que enfrenta diariamente, seja dentro de casa ou no mercado de trabalho. Mas esses não são os únicos locais em que a mulher precisa dizer de si, diversos outros papéis vêm ganhando espaço na perspectiva feminina e eles já estão desacomodando muita gente. Na família, a mulher que estuda e busca outras realizações precisa encontrar no relacionamento com esposo e filhos o diálogo para não precisar pedir licença no seu processo de evolução para atender as demandas da casa, já que todos vivem e interagem naquele lugar. Já nas empresas também sabemos que cresce cada dia mais o número de mulheres que ocupam cargos de liderança e que mostram a que vieram.

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Nas universidades, nas ruas, nas escolas, nos espaços públicos, nas redes sociais muitos são os movimentos e grupos de mulheres, de mães que somam forças para responder aos desafios da sua época e para não repetir mais padrões que trazem na sua história de submissão ou de aprisionamento no âmbito restrito da família, da casa ou do local em que nasceram.

O cinema também traz exemplos de mulheres que estão em diversos enfrentamentos que impacta a família, a empresa, sua cidade e país. Dos filmes mais falados no momento ­­­­­­­­Três Anúncios Para Um Crime revela a saga de Mildred Hayes (Frances McDormand) que inconformada com a ineficácia da polícia na busca pelo culpado da morte da filha resolve encontrar uma solução para chamar a atenção de todos, através de três anúncios em outdoor numa estrada pouco usada. Acontece que isso traz consequências para diversas pessoas. A fúria, misturada com energia, com uma culpa enorme devido as últimas palavras dirigidas para a filha antes do assassinato e a perda dramática geram uma sede por justiça movida pela vingança. Já em A Forma da Água, a jovem muda Elisa (Sally Hawkins) apaixona-se por uma criatura incrível mantida sob prisão em um laboratório experimental nos EUA. A sensibilidade e a empatia fazem com que as diferenças não tenham vez nesse relacionamento e embora sem nenhuma comunicação verbal, Elisa consegue criar estratégia e liderar a fuga da criatura amada. Tudo muito delicado, intenso, fora da “normalidade”, assim o filme vai relatando essa fábula fantástica e envolvente.  

Em Eu, Tonya, o filme conta a difícil história da patinadora americana Tonya Harding (Margot Robbie - indicada a Melhor Atriz), que tem uma relação abusiva com o marido Jeff Gillooly (Sebastian Stan) e enfrenta um grande desamor da sarcástica, exigente e indiferente mãe LaVona Harding (Allison Janney – indicada a Melhor Atriz Coadjuvante). O longa revela como a matriz do amor da patinadora foi formada na violência e na dor, na agressão e na ausência do pai e da mãe – essa embora presente, não criava vínculo algum com Tonya. Além disso, a jovem enfrenta a violência sutil de uma classe social em que não basta apenas ser eficiente na ginástica, mas precisa possuir todo um arsenal de qualidades para ser considerada amada por todos. Tonya não se enquadra nesse modelo, muito pelo contrário sua vida traz diversas contradições, envolvimentos afetivos doentios, isolamento, entre outras perdas que a distanciam do modelo idealizado pela sociedade americana.

Esse último filme me fez pensar muito. Sabemos que um grande número de mulheres vem de uma família em que a violência é uma marca desde a mais tenra infância. Minha história também está nas estatísticas. Nascida em uma família tradicional, numa cultura machista desde as relações familiares até o espaço em que se deve sentar dentro da igreja. Presenciei inúmeras vezes uma situação muito dolorida que foi o alcoolismo do meu pai. Difícil aceitar-me como mulher e procurar estima e amor próprio para ocupar meu espaço já que via minha mãe, primeiro modelo do feminino ser atacada constantemente nos acessos que meu pai tinha diante da bebida. Agressões verbais e físicas – e, pode acreditar, as verbais são as que mais me afetam, porque de alguma maneira ecoam na minha mente e ainda hoje geram algum tipo de desconforto e tristeza. Sei que essa é uma realidade ainda muito vivenciada na casa de inúmeras pessoas e quando não é declarada, é aquele tipo de relação em que a mulher não tem vez e, quando fala, é porque está alterada e descontrolada querendo chamar a atenção. Ou ainda, é subestimada pela sua capacidade intelectual e afetiva.

Meu pai é um ser humano maravilhoso e por isso a dor que essa dependência gerava era imensa porque ele se tornava um estranho para todos nós.  Há alguns anos ele está limpo, parou definitivamente de beber, mas as feridas ainda estão cicatrizando.  Não foi fácil nessa realidade encontrar um rosto de Deus amor, terno, um Deus Pai e Mãe, numa perfeita sintonia. E, de acordo com minha leitura infantil, minha mãe era muito passiva a toda aquela situação, por isso fazer as pazes com a figura da mãe e mulher demorou muito dentro de mim. Até que a dimensão do perdão, começou a fazer muito sentido.

Através do perdão senti que esse Deus Pai e Mãe gera incansavelmente uma vida nova em todos nós. A misericórdia divina é uma virtude muito feminina, porque de uma situação de morte é capaz de resgatar a vida com todo o seu potencial. Anos mais tarde entendi que quem resgatou meu pai e o ajudou a ter sua dignidade foi minha mãe. Não sou eu quem vai julgá-la e dizer que deveria tê-lo abandonado, afinal, depois de 30 anos de casamento, creio que entre eles as curas devem estar ocorrendo.

Felizmente, pude contar com um cem número de grandes mulheres, de especialistas, de pessoas ligadas a Igreja Católica, de místicas/os, teólogas/os, e principalmente meu marido e filho, que ajudaram a elaborar a minha história. Pude sentir a presença de Deus Pai e Mãe a me acolher, cuidar e potencializar. Sei que nem todos tem essa oportunidade. Por isso, entendo a cada dia que essa dimensão da fé, da oração, da espiritualidade, em que o ser humano é olhado por inteiro e amado com suas luzes e sombras para poder conectar-se com Deus é o trabalho diário que tenho. Tornou-se uma espécie de missão e é o que dita o ritmo das minhas relações e do meu ser nesse mundo. Penso que esse processo é homeopático, nem sempre tudo está harmonizado dentro de mim. Mas a medida em que Deus se torna mais humano porque se aproxima da nossa realidade, sinto que nós humanos, mulheres e homens, conseguimos olhar para nossas feridas, criar novas relações, mais justas, mais responsáveis, mais saudáveis.

Assim como nas histórias dos filmes, as mulheres da vida real não são as mocinhas perfeitas dentro dos padrões pré-estabelecidos. Sabemos que cada uma de nós carrega as lágrimas e os sorrisos de histórias que precisam ser contadas, não mais deixadas em quatro paredes. Há muita coisa que precisa ser ressignificado em nós, nossas famílias paternas/maternas e nas que constituímos, para que nossas competências e habilidades não precisem ser colocadas a prova a toda instante. Isso gera vida e podemos construir relações justas e fraternas. Por sinal, justiça e fraternidade são algumas referências para quem segue Jesus de Nazaré. Ele que há dois mil de anos conseguiu aproximar culturas, gêneros, sistemas que estavam separados por crenças, por leis; incluiu desde aquela mulher que tocou seu manto, a que estava morta sobre uma cama, a outra que estava a beira do poço e aquela que viu a pedra removida do sepulcro e exigiu explicações sobre onde estava o corpo do mestre. Penso nesses comportamentos de Jesus e me questiono sobre como ainda precisamos evoluir para de fato nos chamarmos de cristãos. O cinema indica alguns caminhos, cheio de provocações que não contam só a história dos outros, mas, por ser uma arte, revela um pouco de nós.

*Simone Ramos é jornalista, apresentadora de tv e Life Coach. Gaúcha de nascimento, mineira de coração. Mamãe do Pietro e esposa do Pedro. Vive a espiritualidade Inaciana e procurar levar as inspirações de Santo Inácio para a tv, para os atendimentos e, sobretudo, para a vida familiar.

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