sexta-feira, 2 de março de 2018

Sacramento e hedonismo

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Não importa para onde vamos, estamos sempre voltando pra casa.
Lady Bird é a história de um rompimento.
Lady Bird é a história de um rompimento. (Copyright Droits réservés)
Por Matheus Pichonelli*

Sacramento é o nome da cidade onde nasceu e cresceu a protagonista de Lady Bird – Hora de Voar. Capital da Califórnia, é apontada pela escritora Joan Didion, citada logo no início do filme, como uma antítese da capital do hedonismo, como é conhecido aquele estado.

Aquele cenário ganha uma dimensão alegórica à medida que o filme avança e se acirram os conflitos de Christine McPherson, personagem interpretada por Saoirse Ronan que rejeita o nome de batismo e quer ser chamada de “Lady Bird”. Mais que isso, ela quer voar dali, para longe, e, como todo adolescente prestes a botar os pés na faculdade e na vida adulta, romper os laços que a une às pessoas daquele lugar.

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Na tradição católica, são celebrados, ao longo da vida, sete sacramentos: batismo, confirmação (ou crisma), eucaristia, reconciliação (ou penitência), unção dos enfermos, ordem e matrimônio.

Naquela cidade, é notória a influência da Igreja na formação dos personagens, todos estudantes de colégios católicos e, de alguma forma, tensionados pela iminente tensão dos laços e valores familiares. Sair daquela cidade é uma forma de criar uma narrativa própria, sem vigilância, sem culpas além das inevitáveis.

Nessa tensão, a garota vive às turras com a mãe, e neste ponto a diretoria Greta Gerwig consegue abordar de modo sutil, sem precisar gritar, um afeto contraditório na relação entre pais e filhos: uma espécie de boicote de quem, por amar em excesso, não quer ver os filhos longe. Ali é possível visualizar a paranoia da sociedade global depois dos ataques de 11 de Setembro.

O excesso de proteção, porém, flerta muitas vezes com uma espécie de achaque emocional. “Você não é capaz”, diz a mãe a todo instante, já sem disfarçar o pânico de se ver sem a filha que pretende atravessar o país.

Lady Bird é a história de um rompimento, e só quem um dia saiu de casa consegue compreender a virada que a protagonista começa a vivenciar conforme se desconecta de suas raízes – ou sacramentos, para ficar no plano alegórico. Ela, que na adolescência desafiava as autoridades simbólicas em casa, na escola e na igreja como uma afirmação da própria liberdade, se protege do desamparo, quando finalmente se vê sozinha, com um outro olhar sobre suas origens. A reconstituição tem como linha central a ternura.

Completa a travessia rumo à metrópole, o primeiro local que ela procura é uma igreja. Lá, deixa o nome inventado para reforçar a identidade de batismo: “meu nome é Christine”. Porque só a distância permite a reconciliar com a mãe, cruelmente associada a uma limitação geográfica, mas também existencial.

Algo ali ecoa os jovens compositores do Clube da Esquina, que quando chega à noite se percebem mortais e apresentam o futuro nas mãos na velha calçada, “fugindo, fugindo pra outro lugar”.

Os dilemas enfrentados por ela – desajuste social, virgindade, insegurança, não pertencimento – soam, assim, menos pueris quando lembramos que já fomos adolescentes um dia.

É como definiu Raduam Nassar: não importa para onde vamos, estamos sempre voltando pra casa. E, uma vez fora dessa casa que sufoca, estamos sempre condenados a ser estrangeiros: o estranho na cidade de origem é o anônimo na cidade grande que nos acolhe.

Na outra direção, os demais concorrentes ao Oscar se ocuparam demais em criarem épicos, talvez numa tentativa rasgada de impressionar o público e a Academia, seja nos dramas históricos de Durkink, O Destino de uma Nação, The Post e A Forma da Água, seja nas polaroides de uma era de não-comunicação, como Corra! e Três Anúncios para um Crime. A fotografia sombria preponderante da maioria dos concorrentes é uma piscadela sobre os conflitos do presente: seguimos no escuro, à espera das decisões corretas, tomadas por grandes lideranças. Ali é o homem moderno, sozinho com a sua consciência, em busca de uma luz para seus impasses históricos. É o chamado do herói.

Entre os indicados, porém, Lady Bird, a anti-heroína, é quem melhor escancara os conflitos do sujeito contemporâneo, que no caminho entre fé e liberdade tropeça no desamparo, em uma ponta, e na repressão da própria vocação, na outra. A busca do equilíbrio é uma espécie de Santo Grall dessa geração.

O filme, vale lembrar, se passa em 2002, um ano que, segundo a protagonista, só tem graça por ser um palíndromo. Para ela, nada acontecia demais naquela cidade, naquele tempo – mal imaginava que uma revolução estava prestes a acontecer no mundo naquela primeira década do século. A referência ao celular, um bem de consumo a princípio associado por aqueles jovens como um rastreador do paradeiro dos filhos, dá a dimensão de uma revolução subestimada. Graças à tecnologia, ninguém se comunicaria como antes depois de 2002. E nunca uma mudança tecnológica afetou tanto a forma de pensar, agir e falar como aquele “rastreador”. Lady Bird é um epílogo da geração pré-Facebook.

*Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e CartaCapital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e se mudou para Valinhos, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol enquanto molha as plantas, passeia com a cachorra e coloca Rolling Stones no celular para o filho de 4 anos se entreter. Além do Blog do Pichonelli, é colaborador dos sites The Intercept Brasil e do Instituto CPFL.

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