terça-feira, 29 de maio de 2018

O pão nosso de cada dia

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Nos tempos de crise revelamos o que somos, o que pensamos, o que sentimos e como agimos.
Além da graça de Deus que vem em socorro das nossas necessidades, é a partilha entre nós que multiplica o pouco que temos.
Além da graça de Deus que vem em socorro das nossas necessidades, é a partilha entre nós que multiplica o pouco que temos. (Reprodução/ Pixabay)
Por Tânia da Silva Mayer*

Os tempos de crises são muito importantes para as pessoas e também para os grupos e sociedades. Por estarmos mais vulneráveis, expomo-nos mais que costumeiramente. Livres da obrigação de parecer quem não somos, nos tempos de crises, revelamos o que somos, o que pensamos, o que sentimos e como agimos em situações adversas. Na Bíblia, há uma personagem da literatura sapiencial que se revela como um homem justo e temente a Deus durante a vivência de um tempo de dificuldades, nos quais perde tudo o que possuía, bens, família e a própria saúde. Jesus também se revela plenamente como Filho no caminho doloroso da obediência que culmina na entrega da vida na cruz.

Como podemos ver, as situações e os tempos de crises têm um pouco mais a dizer sobre nós. E o que esse tempo de crise que estamos vivendo enquanto sociedade brasileira revela um pouco mais do que somos? Certamente muita coisa está sendo dita a nosso respeito: como somos reféns de combustíveis fósseis não renováveis; como somos um país frágil, sem meios outros de escoamento de produção a não ser por caminhões e estradas; como uma única categoria de trabalhadores é capaz de paralisar um país; como estamos desmotivados e desorganizados na reivindicação por nossos direitos e etc.

Mas outra coisa muito surpreendente, e que é o motivo deste artigo, é a revelação da radical incoerência no interior de nossa sociedade. Enquanto alguns grupos e movimentos, tais como o MST, subsidiaram com alimentos os caminhoneiros em greve, de outro lado, e de maneira mais aguda, assistimos uma corrida egoísta e desenfreada aos postos de gasolina e supermercados por parte de muitas pessoas. Os telejornais deram visibilidade à ganância de alguns e a sua loucura que os autoriza a não pensar nos outros. E é precisamente isso, não enxergar quem está a nossa volta só revela quanto nossa humanidade está desumanizada. Quando só compreendemos a nós mesmos e as nossas necessidades rompemos com a teia de humanização que só é possível na relação com outro, relação que também não pode ser reificadora. Ir ao supermercado como se estivéssemos à beira de um colapso e superlotar um carrinho de compras com a enganosa crença de que poderá vir a ficar desprovido é sintoma de uma sociedade individualista e egoísta, capaz de negar socorro àqueles que enfrentam necessidades. Talvez isso justifique nossa incapacidade de nos indignarmos diante da situação política e econômica que já faz muitas pessoas a viverem a fome. Acorrer aos postos de gasolina com a finalidade de assegurar o próprio direito de ir e vir à revelia do direito dos demais é uma coisa estranha e carente de compreensão.

A terra não parou, o Brasil deu sinais de que, se as coisas continuarem como estão, pode vir a parar. No ambiente médico, o verbo parar é utilizado quando alguém morre, diz-se dele que parou. Prefiro acreditar que a sociedade brasileira caminha muito lentamente, mas que ainda não parou. Não morremos. Não morreu nossa sensibilidade, abertura e capacidade de perceber o que está descompassado em relação a uma ética que vise o desenvolvimento e realização de cada pessoa e da sua humanidade.

Diante dos exageros presentes e de uma enganosa preocupação que nos faz pagar mais caro por determinados produtos e mercadorias, num súbito de insanidade, graças à desonestidade de alguns comerciantes, a teologia cristã nos ensina a temperança. Basta-nos o pão nosso de cada dia. Basta o necessário para hoje, o suficiente para garantir nossa sobrevivência. Ademais, além da graça de Deus que vem em socorro das nossas necessidades, é a partilha entre nós que multiplica o pouco que temos, a fim de que o imprescindível não falte a ninguém. Olhar além do próprio umbigo é cristão e, sobretudo, humano.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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