segunda-feira, 4 de junho de 2018

Abastecer a alma

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Como seres da falta, precisamos nos educar para o fato de que nem sempre estaremos abastecidos.
Lidar com a frustração do não possuir é um dos maiores desafios de nosso tempo.
Lidar com a frustração do não possuir é um dos maiores desafios de nosso tempo. (Reprodução/ Pixabay)
Por Felipe Magalhães Francisco*

Quem imaginaria que uma greve de caminhoneiros levaria tantos dias e paralisaria o país? O clima nas grandes cidades era de deserto. Lojas fechadas, ruas vazias... As redes sociais pululavam apoio aos grevistas: coisa inédita, num país em que greves e manifestações são vistas com maus olhos. Alguns setores da sociedade se mantiveram com o pé atrás, desconfiados dessa movimentação que tinha ares de estratégia patronal e manipulação de massas. Na briga pelo domínio da narrativa, discursos intervencionistas ganharam um assustador espaço, levantando uma importante discussão sobre a loucura de quem quer se entregar ao domínio militar-ditatorial.

A mídia oligárquica de nosso país, uma vez mais, mostrou sua força. Investiu no caos. Um sem número de pessoas, apavoradas, corriam para abastecer suas dispensas e seus tanques de combustível, com medo da falta. De fato, muita coisa faltou; os preços se elevaram. Mas a classe média toda sobreviveu. Os empobrecidos e as empobrecidas já estão acostumados à carestia. Faltou gás de cozinha? Faltou, mas, aos pobres, não fez diferença: desde que o atual desgoverno assumiu o poder, o número de famílias que cozinham o pouco de alimentos que têm, à lenha, aumentou. Os trabalhadores e trabalhadoras continuaram a fazer uso do transporte público de péssima qualidade: demorado, lotado, insuficiente e caro.

Muito impressionante foi a reação da classe média, quando na ocasião em que o fornecimento de combustível começou a ser efetuado, nalguns postos das cidades. A mesma classe média que reclama da alta carga de impostos, fazendo filas gigantescas com seus carros, virando a noite, para abastecer a preços injustos e exorbitantes. A mesma classe que, nas redes sociais, alardeava apoio aos caminhoneiros em greve. Greve, afinal, para quê? Bastante sintomático o que temos vivido desde junho de 2013: reivindica-se tudo e nada: a mobilização cega de setores da sociedade nos trouxeram ao caos em que nos encontramos agora. A irresponsabilidade de quem gritava movido pelo ódio alçou um bando ao poder, que tem destruído, numa velocidade digna de fórmula 1, o patrimônio nacional e os direitos dos trabalhadores e trabalhadores e do povo em geral.

Tudo isso dá o que pensar! A maneira como muitos se comportaram com seus carros, sob o risco de ficarem sem combustível, revela o apego às coisas que temos vivido. A impressão é a de que automóveis desempenham o mesmo papel que os óculos, por exemplo. É claro que havia aqueles e aquelas que dependem de seus automóveis para o trabalho, para a garantia da vida de seus entes queridos, numa emergência, mas, que tempos são esses em que nos apavoramos pelo fato de ter que enfrentar o transporte público, coisa que milhares e milhares de pessoas comuns fazem todos os dias? Somos seres da falta e, é certo que é difícil aceitar isso, mas continuamos seres da falta. Não há bem de consumo que supra esse vazio e, ficar convencidos do contrário disso, é ceder à loucura.

É preciso dar às coisas o lugar de coisas. Nem mais, nem menos importância. Como seres da falta, precisamos nos educar para o fato de que nem sempre estaremos abastecidos. Lidar com a frustração do não possuir é um dos maiores desafios de nosso tempo, no qual estamos tão imersos na lógica do consumo desenfreado e irresponsável. Na greve dos caminhoneiros e na crise do abastecimento, a imensa maioria sobreviveu e continuará sobrevivendo a falta de coisas que não são necessárias, mas contingentes. É hora de abastecer a alma: busquemos aquilo que verdadeiramente importa, que é viver com sentido.

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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