sexta-feira, 1 de junho de 2018

Rapper norte-americano afronta o racismo com coragem

  Carlos Messias

LOS ANGELES - MAY 10: Donald Glover arrives to the "Solo: A Star Wars Story" World Premiere on May 10, 2018 in Hollywood, CA
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Criador da série Atlanta, também conhecido como Childish Gambino, o multiartista Donald Glover lança videoclipe ousado e cheio de referências históricas
Já foram mais comuns artistas, digamos, multiuso – o tipo que demonstra talento em mais de uma forma de expressão. Como, por exemplo, Elvis Presley, Justin Timberlake e Jared Leto, que interpretaram papéis no cinema assim como canções; Nick Cave, cuja obra inclui discos, livros, roteiros e pontas em filmes, ou Ethan Hawke e Michael Madsen, que, além de atores, já se arriscaram na literatura. Ainda Corey Glover, há mais de 30 anos vocalista da banda de rock Living Colour, que atuou no clássico filme Platoon (1987), de Oliver Stone. Mas o Glover do momento vem se revelando multiartista em várias frentes. Trata-se do roteirista, ator, humorista, produtor, DJ e rapper Donald Glover, que não tem parentesco com o roqueiro (nem com Danny Glover, ator de Máquina Mortífera).

Também negro, Donald começou a carreira em 2006, ainda quando estava na universidade, como roteirista da série 30 Rock, na qual também fez pequenos papéis. Entre 2009 e 2014, interpretou um estudante universitário no sitcom Community e, neste ano, ganhou papel de destaque no longa Han Solo: Uma História Star Wars, atualmente em cartaz. Mas sua verdadeira inquietação artística foi revelada em 2011, quando se lançou como o cantor de rap Childish Gambino (nome sob o qual já lançou três álbuns) e passou afrontar o racismo sob uma ótica mordaz. Paralelamente, em 2016, ele lançou Atlanta, série de TV que criou, escreveu, produziu, dirigiu e protagonizou, na qual retrata de forma hiper-realista a rotina de um grupo de negros marginalizados na capital do estado da Geórgia, nos EUA.

Mas o recado de Childish Gambino nunca foi tão bem dado como no clipe da música This Is America, que lançou no começo de maio, já no topo da parada da revista Billboard. Em 25 dias, o vídeo ultrapassou 212 milhões de visualizações no YouTube (o primeiro milhão se deu só na primeira hora; ainda atingiu a marca dos 12,9 milhões no primeiro dia online). A estreia estrondosa fez com que o número de streamings das músicas de Childish Gambino subisse 114% nos EUA nas primeiras duas semanas e com que os índices de vendas dos seus discos prévios subissem 419%.

O que há, afinal, de tão impactante no videoclipe de This Is America? Além do poder de mímese da canção, da filmagem e da fotografia impecáveis, do cenário desolador, das coreografias casadas e do empoderamento que Donald Glover demonstra na tela, o filme é repleto de referências históricas e significados ocultos.

A faixa inicia com um coro alegre em hip-hop. Já na primeira cena, o homem negro que aparece tocando violão representa o pai de Trayvon Martin, jovem adolescente que em 2012 foi morto pela polícia da Flórida por estar vestindo um capuz. O incidente originou o movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”).

Então entra na música um grave pesado, como que representando a alarmante realidade de ser um negro nos EUA, e o cantor encena atirar em um homem encapuzado com as mãos amarradas, tal qual um escravo. Ao se abaixar para disparar o revólver, Glover adota postura que remete a Jim Crow, personagem teatral do século 19 que ridicularizava negros e exprimia os preconceitos raciais do homem branco nos EUA. À época, entre 1876 e 1965, vigoraram no país as chamadas Leis de Jim Crow, que basicamente institucionalizaram a segregação racial. Na sequência seguinte, o rapper faz umas caretas estranhas que remetem a Uncle Ruckus, personagem negro da história em quadrinhos The Boondocks, que renegava a própria raça e era apoiador de George W. Bush.   

Gambino ensaia passos de dança africana junto a um grupo de crianças, enquanto ao fundo um tiroteio corre solto, ironizando, assim, a visão pueril que o homem branco médio tem da vida no gueto. O mesmo vale para o coral de igreja que é fuzilado, clara referência ao massacre que ocorreu em uma catedral de Charleston, capital da Carolina do Norte, em 2015. Importante observar que o artista não faz apologia à violência, mas, sim, representa no vídeo a crueldade já sofrida pelos negros no mundo real.

Mesmo após o crime, o “atirador” passa incólume pela polícia, que segue com cacetetes em riste atrás de jovens negros, uma alusão à impunidade dos crimes raciais nos EUA. Enquanto se desenrola um confronto violento ao fundo, Glover e as crianças ensaiam passos de dança, enquanto ele canta  como se nada estivesse acontecendo. O que é uma alegoria à cultura do entretenimento, que ignora problemas reais vividos pela comunidade negra.

O carro pegando fogo é uma referência ao confronto entre negros e supremacistas brancos que ocorreu Charlottesville, Virgínia, no ano passado. O cavalo branco que na sequência aparece em frente à viatura policial pode significar que o veículo está sendo guiado pela morte e/ou pelo Ku Klux Klan. Depois, o músico dançando sobre carros antigos faz alusão aos Distúrbios de Los Angeles, que ocorreram a partir de uma agressão cometida pela polícia contra um negro, em 1992. Por fim, vemos Childish Gambino correndo da polícia, que pareceu ignorar todos os crimes ocorridos no clipe até então.  

Longe de instigar a violência, o vídeo apresenta um raio-X da gritante disparidade racial que ocorre nos Estados Unidos, assim como em diversas partes do mundo (inclusive no Brasil). Em vez de refutá-lo, por tamanha ousadia estética e discursiva, cabe ao homem branco refletir sobre como ele é parte de um sistema segregador e o que pode fazer para reverter isso.

Pelo surpreendente desempenho do clipe em tão pouco tempo, pode-se constatar que Donald Glover conseguiu transmitir sua mensagem.

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