domingo, 23 de setembro de 2018

A faísca divina de eros: a sexualidade como dom

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A faísca divina que brota em eros aponta para algo mais profundo: a capacidade de como seres dotados de sexualidade, amar.
A sexualidade nada mais é do que um presente, um dom do Senhor.
A sexualidade nada mais é do que um presente, um dom do Senhor. (Reprodução/ Pixabay)
Por César Thiago do Carmo Alves, FMI*

Coloca-me, como sinete sobre teu coração, como sinete e, teu braço. Pois o amor é forte, como a morte, o ciúme é inflexível como o Xeol. Suas chamas são chamas de fogo uma faísca de IAHWEH (Ct 8,6)

O tema da sexualidade ainda parece tabu. Envolve toda a vida humana. No percurso da história da sexualidade ocidental, nota-se que sempre ela esteve presente nos discursos. Se antes da revolução sexual dos anos de 1960 acreditava-se que essa temática não era verbalizada, basta verificar os manuais dos confessores católicos. Ali se evidencia que nunca esteve fora dos discursos. Se antes eram assuntos tão somente tratados nos confessionários, depois da revolução sexual pode-se dialogar abertamente sobre ela. No entanto, ao percorrer sobre os discursos estabelecidos sobre a sexualidade, no caso brasileiro, nota-se os contornos morais e religiosos impressos em tal temática. Nesse artigo, queremos abordar a partir de um olhar teológico a respeito de uma questão tão disputada. Basta ver como que ganha forças, numa sociedade religiosamente tarada, a preocupação da educação sexual de crianças, sem nem mesmo saber o que seja, acreditando que isso se reduza sumariamente a questões genitais. Por detrás dessa preocupação, em muitos casos, o viés religioso possui uma força ímpar na reflexão.

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De início, urge afirmar que sexualidade não se reduz ao sexo. Cabe observar que ela faz parte da antropologia humana. Nascemos com sexualidade, para além das orientações sexuais. Se somos obra da bondade criadora de Deus e assim nascemos, logo pode se concluir que a sexualidade nada mais é do que um presente, um dom do Senhor. O Criador nos criou como seres dotados de sexualidade para sermos, por meio dela, capazes de amar. Nesse sentido, amor e sexualidade forma um binômio que compõe a trama de nossa existência. Os gregos, em sua sabedoria, tiveram a inteligência e a didática de classificar as formas de amor, a saber: Eros, ágape e filia.

Com muita frequência, ouve-se em programas e celebrações religiosas violentas investidas contra o “erotismo”. Nesses contextos, o “erotismo” se transforma em sinônimo de pornografia e se confunde com que existe de mais depravado em termo de sexualidade. Implicitamente se sugere que Deus criou o amor, mas foi o demônio que gerou o eros. É certo que num primeiro momento o eros assusta. Ele não é inocente porque se apresenta cheio de contradições e ambiguidades. Movimenta a vida e a morte. Na linguagem dos Cânticos dos Cânticos, eros é em última análise uma faísca divina.  Como faísca divina, eros impulsiona a criatividade, a irrupção do novo e a fascinação. Ele arranca do comodismo. É pulsão de vida, mas se deixá-lo controlar ele pode revelar como força destruidora. Eros é a sexualidade em seu berço mais primitivo. Ao perceber isso, pode-se pensar que essa força é negativa. No entanto, essas paixões são simplesmente um potencial extraordinário que Deus colocou em nossas mãos. Ele assim o fez para que no conjunto da existência pudéssemos, a partir da sexualidade como dom, (re)significar a própria vida e se compreender como ser-no-mundo. Essa faísca divina que brota em eros aponta para algo mais profundo: a capacidade de como seres dotados de sexualidade, amar. É por conta dele que se pode vislumbrar o ágape. Com isso pode-se afirmar que a sexualidade é também um dom para o devir de se tornar humano.

Na força de eros e na plenitude do ágape, a sexualidade como dom para amar encontra sua maior referência em Jesus. O mandamento de amar a Deus e ao próximo (Mt 22, 36-40), núcleo de seus ensinamentos, orienta para a vivência da sexualidade. Como dom, a vivência da sexualidade se torna como que um lugar de acolhida do outro. A hospitalidade do outro em nós consiste, em última análise, reverenciar o mistério que essa pessoa que chega até a nós se revela.

Muitas das interpretações erradas feitas da Sagrada Escritura a respeito da sexualidade, tem como pressuposto o não alcance de um entendimento da bondade da criação. Condenações de determinadas orientações sexuais, afirmando que estão na contramão do que foi criado por Deus, que é contra a natureza, simplesmente não compreendeu os textos bíblicos em sua riqueza e tão pouco considerou aspectos antropológicos e teológicos que balizam a reflexão a cerca da sexualidade. Toda e qualquer forma de expressão, orientação e até mesmo de identidade de gênero está na esfera do dom. Papa Francisco lançou luzes sobre essa questão. Quando Juan Carlos Cruz, que sofreu abusos sexuais na infância por parte de um padre pedófilo e é homossexual, foi conversar com Francisco, relata o próprio Juan, que o Papa afirmou que Deus o havia feito assim e assim o amava. Que era preciso ele estar feliz com quem ele era. Ao trazer para a esfera do dom, o Papa Francisco eliminou toda uma perspectiva condenatória de uma orientação sexual. Falou do amor e da bondade de Deus que cria amando e ama criando. E se tudo o que Ele fez era bom (Gn 1), também a sexualidade em suas diversas expressões também é boa. Nenhuma é fruto de “espírito do maligno”.

 Realizar-se como pessoa, potencializando e densificando a sexualidade, é vislumbrar a beleza de Deus impressa na nossa existência e a Ele elevar a reverência de gratidão por ser o que somos. A sexualidade é dom de Deus e dom de humanização.

*César Thiago do Carmo Alves pertence à Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos). É doutorando e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). É graduado em Filosofia pelo ISTA e Teologia pela FAJE. Possui especialização em Psicologia da Educação pela PUC Minas.

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